VIDA NA SARJETA


O academicismo brasileiro sobre os nossos principais problemas sociais, salvo nobilitantes exceções, necessita abandonar teses sensaboronas, aquelas que apenas retratam o “óbvio ululante” de Nelson Rodrigues, ansiando apenas por autoproclamações perante seus pares com posturas ideológicas similares, que se deixam levar por escritos de muitas décadas, quando as conjunturas eram estruturalmente diferenciadas dos tempos de agora. E onde até as religiões possuíam influências significativas sobre seus fiéis, a ponto de um determinado bispo brasileiro, do sudeste, num dos seus sermões cretinamente assim se justificar: “Meus irmãos, como exerceríamos a caridade, se não existissem os pobres?”

Nos últimos tempos, entretanto, parece estar havendo um gigantesco despertar no mundo inteiro, onde emergem pesquisadores sociais dotados de uma capacidade crítica independentemente dos aplausos oportunísticos nada convincentes. Um dos mais recentes é o médico psiquiátrico britânico Theodore Dalrymple, um dos pseudônimos de Anthony Daniels, e seu livro intitula-se A Vida na Sarjeta – o círculo vicioso da miséria moral, SP, É Realizações, 2014, descrevendo sua rica experiência nas subclasses de quatro continentes, inclusive subclasses na Inglaterra, onde “cuida da clientela de baixa renda de um hospital de periferia e dos detentos de uma penitenciária de Londres”.

Segundo Dalrymple, “a pobreza continuada não tem causas econômicas, mas encontra fundamento em um conjunto de fatores disfuncionais, continuamente reforçados por uma cultura de elite em busca de vítimas”. Em seu livro, escrito com lucidez e sem sentimentalismos em 22 capítulos, ele trata das ideias elitistas que patrocinam as subclasses, estando o autor das orelhas do livro, economista Ubiratan Jorge Iório, também docente da Faculdade de Economia da UERJ, convencido que o “Estado do Bem-Estar não apenas resolve os problemas associados à pobreza como, na maioria das vezes, os agrava”. E vai além: “Os instrumentos para vencer a pobreza são sistematicamente negados aos pobres de hoje, ao passo que são marteladas justificativas para que permaneçam pobres”.

O principal do livro é quase um mandamento: “Se queremos de fato combater a pobreza, a primeira coisa a ser feita é tratar os pobres como seres humanos e não como boiada”.

Um livro para ser lido, debatido, sem posturas eleitoreiras ou sonhos demagógicos. Antes que a casa caia e a guilhotina reapareça.

(Publicado em 31.01.2015, no Jornal do Commercio, Recife, Pernambuco
Fernando Antônio Gonçalves