VACINA PARA MORALISTAS E PURITANOS


No lançamento da oitava edição do Dicionário do Palavrão e Termos Afins, editora Leitura, Minas Gerais, acontecido na Fundação Joaquim Nabuco no último dia 14 de julho, também aniversário da minha querida filha Ana Carolina, recordei por uns bons momentos os anos profissionais vivenciados naquela instituição. Para mim, depois de 30 anos, graduação e pós-graduação ouro de lei, enriquecidas por uma interdisciplinaridade que ainda hoje me é de muita valia. E me lembrei de quando o lançamento da primeira edição do Dicionário da Palavrão e Termos Afins, prefaciada por Gilberto Freyre, sofreu uma demora de cinco anos para acontecer, de 1974 a 1979, provocada pelos moralistas e puritanos de um regime militar avesso à Democracia e possuidor de uma intolerância tridentina mediocrizante. Que consideraram o trabalho de Souto Maior “atentatório à moral e aos bons costumes”, uma pesquisa que foi posteriormente destacada pelo escritor Jorge Amado e pelo poetíssimo Carlos Drummond de Andrade, o primeiro considerando o levantamento digno de todos os elogios.

Na solenidade orquestrada pelo presidente da Fundaj Fernando Lyra, tribuno de notável verve nas lutas pela redemocratização do país, entre guaranás e petiscos deliciosos me veio à mente fato narrado pela pensadora política judia Hannah Arendt, formuladora do célebre conceito de banalidade do mal. No seu livro Homens em tempos sombrios, Companhia das Letras, 2008, ensaios biográficos de homens e mulheres que vivenciaram os “tempos sombrios” da primeira metade do século passado, no ensaio “Angelo Giuseppe Roncalli: um cristão no trono de São Pedro de 1958 a 1963”, Arendt reproduz duas ótimas histórias do gorducho papa. A primeira, sobre uns encanadores que tinham sido contratados para efetivar um reparo numa das alas do Vaticano. Durante o trabalho, João XXIII ouviu um deles praguejando em nome de toda a Sagrada Família. Aproximando-se do italiano praguento, perguntou delicadamente: “Você tem de fazer isso? Não pode dizer merda! como nós?”. A segunda, pouco antes de eternizar-se, quando recebeu para ler a peça O Vigário, de Rolf Hochhuth, editada no Brasil pela Grijalbo, em 1965. Ao lhe perguntarem o que se poderia fazer contra ela, respondeu sem pestanejar: -“Fazer contra? O que você pode fazer contra a verdade?”

Para puritanos e moralistas, os sepulcros caiados já defenestrados pelo Homão da Galileia, nada mais recomendável que presentear o Dicionário do Palavrão e Termos Afins, do saudoso Mário Souto Maior, onde “o assunto é tratado com dignidade e com graça”, segundo testemunho de Jorge Amado. Para deixá-los de cucas embiladas…

No prefácio elaborado pelo sociólogo de Apipucos, ele reconhece que Mário Souto Maior, com sua pesquisa, não resvalou para a salacidade (propensão à libertinagem), seu levantamento se impondo como trabalho “elaborado lúcida e pacientemente, sem sugestões outras que deem ao Dicionário o aspecto de obra não simplesmente erótica, porém neurórica”, definindo o palavrão como “elemento útil para a caracterização do ethos de uma sociedade ou das constantes de uma cultura ou da identificação de um tempo social”.

O aplaudidamente ácido jornalista norte-americano H.L. Mencken definia o puritano como “aquele que tem um terror persistente de que alguém, em algum lugar, possa ser feliz”. Quanto ao moralismo, o potiguar Moacyr de Lima não contemporiza: “O moralismo é uma forma dos velhos (não necessariamente os de certa idade cronológica, mas sim ideológica), tentarem de alguma forma exercer certa influência no mundo a sua volta, e como não tem um discurso, nem atos novos, que venham de alguma forma chamar a devida atenção, preferem se algemar aos valores retrógados dos tempos de Cabral, para se mostrarem presentes, e como sabem que um discurso e um ato novo chamam mais a atenção do aquilo que já passou, tratam de castrar tudo que venha a ser visto como uma ameaça, usando como desculpa o batido discurso de que fere os bons costumes e a moral”.

Relendo o Dicionário do Palavrão e Termos Afins do Mário Souto Maior, até para matar saudades do Soutinho, como ele era carinhosamente chamado pelos seus amigos e admiradores, lembrei-me de alguns sepulcros caiados que ainda perambulam pelos ambientes educacionais e religiosos. Fuxicando sempre com a beataria sobre as palavras mais “calientes” ouvidas em ocasiões diversas.

Para todo sepulcro caiado que vestir a carapuça, tornando-se tal e qual “formiga de doce”, uma sugestão minha, embasada no Mário Souto Maior: parar de “roer um couro“ e de ficar “mamando na paula”, tal e qual “pneu murcho” metido a “cavalo do cão”. Sugestão para todos e todas, estas, o segundo dicionário, pássaros fissirrostros, que têm bicos largos e fendidos. O resto sendo muita frescura esquerdeira.

(Portal da Revista ALGOMAIS, 19/07/2010, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves