UTOPIA VIÁVEL


Extraídos um certo empavonamento do autor e algumas alfinetadas dispensáveis, o livro A Soma e o Resto – Um Olhar Sobre a Vida aos 80 Anos, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, é resultado de múltiplas entrevistas por ele concedidas a propósito das transformações do Brasil e do mundo. Num ano eleitoral, vale a pena uma paradinha para uma leitura atenta e crítica.

Numa determinada passagem, FHC fala de uma aparente contradição propositadamente usada por ele, criticada por alguns: “utopia viável”. A significar uma meta, um sonho ou um ideal aonde se quer chegar. Utopias viáveis que foram proclamadas pelo Homão da Galileia, Marx, Gandhi, Francisco de Assis, Buda, Martin Luther King e tantos outros que postularam a estruturação de relacionamentos mais dignificantes entre povos e nações. Utopia pode ser definida como uma construção coletiva que tem por objetivo transpor os “limites do possível”, expressão de Albert Hirschman citada no livro.

Se me perguntassem qual seria minha atual “utopia viável”, responderia num piscar de olhos: uma coligação de forças políticas comandada pelos partidos PT x PSDB x PSB. Para defenestrar eleitoralmente um reacionarismo travestido de bom-mocismo metido a democrático, que ou trava ou sectariza programas que entrelaçam desenvolvimento econômico, justiça social e meio ambiente.

Extraídos do livro, relaciono alguns balizamentos do ex-presidente, que poderiam compor um programa “utopia viável” Brasil 2020 daquelas agremiações, logicamente sem intenções ingênuas de escamotear debates e interesses de cada uma delas. A arquitetura programática capitaneada pelo PT x PSDB x PSB consolidaria a democracia brasileira, estancaria triunfalismos sectários e reduziria a um mínimo divisor comum os posicionamentos oligárquicos e nazi-fascistas dos que apenas desejam ver a sociedade comandada pelo mercado. Ei-los: 1. “O mundo do futuro vai ter que ser um mundo de tolerância, de aceitação do outro. É fundamental ter princípios, mas não ser principista”; 2. “Maio de 1968 (França) me fez perceber que havia mudanças que não se davam por uma ruptura revolucionária, e sim pelo acúmulo de insatisfações, até que um fio desencapado dá um choque que, por contágio, pode provocar um curto-circuito geral”; 3. “A política não é a arte do possível. É a arte de criar condições para tornar possível o necessário”; 4. “As utopias existem. Com o passar do tempo os sonhos vão mudando. Não dá para fazer tudo, a vontade não é lei, mas isso não é razão para se ficar conformado”; 5. “O Brasil de hoje é mais do que uma ‘economia emergente’, é uma ‘sociedade emergente’. Somos um novo país”; 6. “O futuro vai depender de educação, tecnologia e inovação”; 7. “Numa sociedade democrática, não pode ser o mercado quem comanda. Tem que ser a sociedade”; 8. “A saída da crise implica um desafio tecnológico e cultural. A tecnologia sozinha não basta. É a organização social e a cultura que podem criar novas oportunidades de investimentos”; 9. “Desafios futuros: qual vai ser nossa estratégia a longo prazo, quais as novas áreas prioritárias de desenvolvimento em que vamos apostar, qual vai ser nossa matriz energética, em que novos produtos vamos investir, que modo de vida e de sociabilidade queremos?”; 10. “O tema central da esquerda contemporânea é a justiça. Temos liberdade, mas para que serve a liberdade se não há justiça? No passado a demanda por justiça era articulada pelos grandes intelectuais públicos. Hoje ela se exprime por múltiplas vozes na internet. O que parece sólido se desmancha no ar”; 11. “É a emergência do novo que move a sociedade. Não estamos repetindo o passado nem seguindo modelos de fora. Algo original está sendo gerado aqui e agora”; 12. “A visão de que nada muda quando não há revolução é conservadora. Os nostálgicos do passado, incapazes de entender o presente, calam sobre o futuro”.

Para que não se amplie a ação dos políticos oportunistas, onde inescrupulosas ambições buscam levar vantagens bandidas do Erário Público, cabe à sociedade brasileira participar da limpeza ética que se faz inadiável, favorecendo a consolidação de uma Nação de desenvolvimento social e econômico consistente, onde pobres e despossuídos não abdicam da sua cidadania, sempre agindo em função de valores debatidos comunitariamente. Seguindo reflexão de João Ubaldo Ribeiro, “a dominação mais forte e mais difícil de vencer é a que se faz pela cabeça”.

Vencer eleições é bom demais, embora a qualquer preço seja pura autofagia. Mas futuro político com liberdade de pensamento e sem totalitarismos de qualquer espécie, eticamente compatível com os anseios da sociedade, é sempre muito mais recomendável.

PS. As vitórias da Ministra Eliana Calmon e da Ficha Limpa no STF, ambas por 6 x 5, comprovam a existência , naquela corte, de adeptos de um corporativismo travestido, para não dizer pusilânime, tal e qual a denúncia formulada pela própria ministra.

(Publicada em 20/02/2012, no Portal da Revista ALGOMAIS, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves