UTOPIA MILITANTE


Num quarto transformado em ambiente de estudo, muito visitado pela Melba para minutos de prosa iluminadora, releituras têm ampliado minhas utopias, apesar da conjuntura tsumânica por que passam as igrejas da atualidade, muitas envolvidas com pieguices descomprometidas com uma Ética Libertadora que deveria sobrepairar sobre os ambientes eclesiásticos. Muitos deles especializados em práticas colonizadoras, explorações dizimísticas e outras estratégias nulamente associadas aos ensinamentos basilares das Crenças do mundo.

Multiplicam-se, hoje, os que buscam formas de viver e conviver com uma espiritualidade sem burocracias e pompas, tampouco ditaduras doutrinárias. Sem hostilidades para com as mulheres e o sexo, sem autoritarismos nem obscuridades tridentinas. Um bom exemplo é o teólogo Hans Küng, um padre católico romano que exerceu função significante na redação final do Concílio Vaticano II, sendo posteriormente defenestrado por causa dos seus questionamentos acerca das vísiveis ferrugens de uma engrenagem eclesial que se preocupa apenas em proclamar justiça, paz e liberdade nas áreas onde para ela isso nada custa.

As indagações do conceituado teólogo Küng são por demais incomodativas: Quem é realmente Deus? Qual a diferença entre o cristão de fachada e o verdadeiro cristão? Como e onde se deve buscar uma orientação básica para viver os dias de hoje? Quais as dúvidas comuns dos crentes e como conciliá-las com o viver cristão? Como deixar o espírito do ecumenismo florescer?

A minha utopia militante carrega um sonho, o de ver judeus, cristãos e muçulmanos irmanados às demais religiões do mundo, numa cruzada de fé planetária pela Paz Mundial, onde somente balizamentos essenciais seriam oferecidos. Para que Feuerbach não tenha mais razão alguma em dizer que Deus seria um além que se nutre às custas do aquém. Nem que tampouco os marxistas ortodoxos proclamem que vêem Deus como alguém que se bandeia sempre para o lado dos opressores e endinheirados. E que também não tenha motivo algum o Friedrich Nietzsche quando interpreta o Divino como fruto de ressentimentos. Ou o próprio Sigmund Freud e seus discípulos, que teimam em analisar o Altíssimo como copião invencível das necessidades infantis.

Sou integralmente favorável aos “mandamentos” dos cristãos antenados com a contemporaneida: 1. Tentar compreender Deus através da vida e ensinamentos de Jesus; 2. Reconhecer a fé de outras pessoas que têm outros nomes para o caminho que as leva a Deus, testemunhando que tais caminhos são também verdadeiros; 3. Compreender que o partilhar do pão e do vinho em nome de Jesus seja uma representação de uma antiga visão do banquete de Deus para todos os povos; 4. Convidar todas as pessoas para uma comunidade e vida de adoração, sem insistir em conversão para serem aceitas, inclusas estando crentes e agnósticos, cristãos convencionais e céticos, seres humanos de todas as orientações sexuais, raças e culturas de todas as classes e habilidades, todos ansiosos por um mundo melhor; 5. Saber que a maneira como tratamos uns aos outros é a expressão mais completa do que cremos; 6. Encontrar mais graça na busca por entendimento do que em certezas dogmáticas, mais valor nas dúvidas que nos absolutos; 7. Organizar comunidades dedicadas ao trabalho para o qual somos chamados, pela paz e justiça entre todas as pessoas, protegendo e restaurando a integridade de toda a criação de Deus, trazendo esperança àqueles que Jesus chamou de os menores de seus irmãos e irmãs; e 8. Reconhecer que ser seguidor do Homão da Galileia é custoso, implicando amor desinteressado, resistência consciente ao mal e renúncia aos privilégios.

Na visão de caminhante, o Deus que adoro é Aquele que não está sempre a exigir, mas que também dá; que não humilha o Ser Humano, mas que o soergue; que não torna gente doente nem envenena vidas; que poupa os que caem e que, em vez de condená-los, perdoa todos, libertando-os em vez de castigá-los. Um Deus que ama o filho desgarrado mais que aquele que ficou em casa, o publicano mais que o fariseu, o herege samaritano mais que os ortodoxos, as prostitutas e adúlteras mais que muitos bispos hipocritamente rigorosos.

Na minha utopia, a Grande Comissão do Evangelho de Mateus teria como meta primeira ajuntar, pela essência dos ensinamentos, os que apreciassem os gestos magnânimos dos Grandes Espíritos da História, aqui nunca faltando o Nazareno, o Maomé, o Buda, o Shiva, entre tantos outros, jamais sendo renegado os pacificadores de todas as correntes.

Sei que a minha utopia não é impossível, embora jamais a verei. Tenho consciência dos seus distanciamentos na medida que dela o mundo transreligioso se aproximar. Mas percebo que essa utopia nunca desagradará os que sabem sonhar, sempre com os pés bem plantados, numa realidade social que ainda não é dignificante para todos.

Identifico cotidianamente sinais emergentes que brotam nos mais desassistidos espiritualmente, ansiosos para viverem em harmonia com o Criador, entendendo o trabalho não como um pecado imposto mas como um modo de retribuir ao Alto os talentos recebidos, utilizados na construção de uma missão: a de transformar evolucionariamente mais aquilo que já se encontra construído.

Continuar com um sonho é persistir ensinando sobre a inexistência de túmulos, tudo não passando de túneis direcionados para os amanheceres de uma eternidade de muita Luz, como nos ensinou o pastor Campos, na nossa formatura, hoje na Casa do Pai.

PS. Viva Hélder Câmara!, um Dom muito amado, que sempre nos ensinou: “minhas ruas como minhas estradas não têm margens como não têm começo nem fim”!

(Portal da Globo Nordeste, 03.06.2010, Blog BATE & REBATE)
Fernando Antônio Gonçalves