UNIVERSIDADES E O REGIME MILITAR
Quando frequentei, no Rio de Janeiro, o mestrado de Educação da PUC-RJ, numa época de muita censura e múltiplas torturas, 1973, tive como colega de turma Lenice Moura, laureada em concurso público, dotada de uma excelente capacidade analítica, dada uma cultura sólida, que era admirada por todos os mestrandos.
De colega, ela tornou-se amiga muito querida, de correspondência eletrônica mantida até hoje. Numa das suas comunicações últimas, ela recomendou a leitura de um trabalho de pesquisa efetivado pelo professor Rodrigo Patto Sá Motta, do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Intitulado As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária, RJ, Zahar, 2014, o texto é “resultado de um extenso trabalho de pesquisa – em arquivos e instituições de memória (inclusive no exterior), nos acervos das extintas Assessorias de Segurança e Informações e de outros órgãos da repressão, além de inúmeras entrevistas”. O ineditismo da pesquisa se prende ao empenho dos governos militares, apesar de repressivo e arbitrário, em impor que se investisse em formação de mão-de-obra e em pesquisa nas universidades, “aproximando-as do modelo americano: organização departamental, professores em regime de trabalho de tempo integral, investimentos em curso de pós-graduação, ciclos básicos de saber, entre outras medidas”. Um impulso modernizador, apesar de sob um Estado extremamente autoritário.
O trabalho do Rodrigo Patto foi estruturado a partir de questões pouco analisadas pela nossa historiografia. Algumas delas: Qual o impacto do regime militar sobre as universidades e os profissionais da academia?; Como atuaram os apoiadores do regime autoritário nos meios acadêmicos e qual a influência da direita nas universidades?; No campo do ensino superior, como se combinaram e/ou se chocaram os impulsos modernizadores e autoritário-conservadores?; De que maneira as ambiguidades e os paradoxos da ditadura brasileira se manifestaram na definição de sua política universitária?; Como operou o sistema de informações criados nos campi universitários, a rede de Assessorias de Segurança e Informações (ASIs), e qual o impacto dos expurgos políticos?. E também qual a influência efetiva que tiveram os acordos firmados com a United States Agency for International Development (Usaid)?
O autor ressalta que o golpe de 1964 não foi um movimento essencialmente reformista, mas sobretudo anticomunista: “de modo simplificado, esquerda e direita convergiam no diagnóstico de que era necessário modernizar e produzir mais conhecimento, porém os primeiros desejavam também situar as universidades ao lado das causas socialistas”.
Os oito capítulos do livro estão assim sintetizados: 1. Operação Limpeza – intervenções, procedimentos inquisitoriais, expurgos, desafios estudantis; 2. A face modernizadora – Papel do MEC e a influência estrangeira, Projeto Rondon, violências e reformas; 3. A USAID e a influência norte-americana – Aliança para o Progresso, os acordos MEC-USAID, balanço da “americanização”; 4. O novo ciclo repressivo – O Decreto 477, o AI-5 e o AC-75, a irracionalidade dos expurgos, a educação moral e cívica para a juventude; 5. Os espiões dos campi – A comunidade de informações: SNI, DSI e ASI, contrapropaganda, anticomunismo e combate à corrupção, censura e controle da vida universitária, a triagem ideológica, as ASIs na mira: ineficiência e corrupção; 6. O resultados das reformas – aumento de vagas e mudanças no vestibular, expansão da pós-graduação e da infraestrutura de pesquisa, reitores empreendedores, o destino das ciências sociais, problemas e limites da reforma; 7. Adesão, resistência e acomodação: o influxo da cultura política – Impulsos contraditórios, resultados paradoxais, jogos de acomodação; 8. Epílogo: desmonte do aparato autoritário nas universidades – distensão e resposta da comunidade universitária, o fechamento das ASIs, caminho sinuoso, anistia e o retorno dos expurgados, ciclos grevistas e eleições para reitor.
Para os que admiram o economista Celso Furtado, uma reflexão dele deveria estar presente nos mais amplos ambientes universitários: “Não podemos fugir à evidência de que a sobrevivência humana depende do rumo de nossa civilização, primeira a dotar-se dos meios de auto-destruição. Que possamos encarar esse desafio sem nos cegarmos, é indicação de que ainda não fomos privados dos meios de sobrevivência. Mas não podemos desconhecer que é imensa a responsabilidade dos homens chamados a tomar certas decisões políticas no futuro. E somente a cidadania consciente da universalidade dos valores que unem os homens livres pode garantir a justeza das decisões políticas”. Um pensar que bem poderia ser mote para seminários construtivistas permanentes das instituições responsáveis pelo ensino superior brasileiro, na busca por alternativas que favorecessem o estancamento das obsolescências distanciadas dos padrões contemporâneos mínimos de excelência.
Também se poderia recorrer, lendo o livro do pesquisador Rodrigo Patto Sá Motta, aos questionamentos feitos pelo Peter Drucker (1909-2005), um desbravador da área de Gestão Empreendedora: O que precisa ser feito amanhã, no próximo mês, nos próximos semestres, nos anos vindouros? Como concentrar-se no essencial dos amanhãs, sem nostalgias?. Como construir alternativas, sem apostar num único veículo? Como não perder tempo administrando burocraticamente detalhes, sabendo delegar e cobrar? Em outras palavras: poder-se-ia estabelecer uma política de contratação imediata dos alunos laureados das diversas graduações das IES, assegurada, após cinco anos de efetiva e reconhecida docência, a promoção para Professor Assistente, em caráter permanente? Como não se valer de apaniguados na administração universitária, quando da implementação dos novos objetivos estruturadores? Como incentivar procedimentos de inovação e criatividade entre docentes, discentes e gestores de um campus universitário? Como reinventar o próprio conceito de inovação, desburocratizando as atividades técnico-científicas do Ensino Superior, fortalecendo uma profissionalidade mais holística? Como evitar a superioridade privada do ensino superior, injetando mais competência técnico-científica e administrativa na área pública? Como orientar estrategicamente o terceiro grau para desafios e patamares compatíveis com a velocidade de uma mundialização cada vez mais acentuada? Como socializar o lema “quem pensa, ajuda, quem bajula, anestesia”? Como nunca imaginar-se vitimado pelo passado, sempre se capacitando para construção de promissores futuros?
No Ensino Superior do Brasil, caminhar é preciso, sem discriminações nem patifarias.
(Publicada em 11.08.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves