UMA HISTÓRIA POLÊMICA
Creio que uma das maiores revelações do século 20 foi a descoberta, em 1970, do Evangelho de Judas, num deserto egípcio perto de El Mynia. Com bordas de couro, o documento circulou por vários antiquários, permaneceu em um banco de Nova York por 16 anos, até ser adquirido, em 2000, pela antiquária greco-suíça Frieda Nussberger-Tchacos. Que confiou o manuscrito à fundação suíça Maecenas, fevereiro de 2001, para restauração, tradução e análise, trabalho feito sob a coordenação do professor Rodolpher Kasser, especialista em manuscritos, da Universidade de Genebra. Kasser disse jamais ter visto um manuscrito em um estado tão ruim: páginas faltavam, o topo das páginas, onde ficavam os números, estava rasgado, e havia quase mil fragmentos de papiro. Para reconstituir, segundo ele, o “quebra-cabeças mais complexo jamais criado pela história”, o professor Kasser foi auxiliado pela restauradora de papiros Florence Darbre e pelo especialista em copta dialetal Gregor Wurst, da Universidade de Augsburg (Alemanha). O documento, chamado “Códice Tchacos”, foi posteriormente devolvido ao Egito e atualmente pode ser observado no Museu Copta do Cairo.
O Evangelho de Judas é um evangelhoapócrifo, atribuído a autores gnósticos nos meados do século II, composto de 26 páginas de papiro escrito em copta dialectal. Conta a versão de Judas Iscariotes sobre a crucificação de Jesus. Pelo livro, Judas supostamente traiu Jesus apenas para cumprir um mandamento do próprio Salvador.
Desaparecido por quase 1700 anos, a única cópia conhecida do documento foi publicada em 6 de abril de 2006 pela revista National Geographic. O manuscrito, autentificado como datado do século III ou IV (220 a 340 D.C.), é uma cópia de uma versão mais antiga redigida em grego. Contrariamente à versão dos quatro Evangelhos oficiais, este texto clama que Judas Iscariotes era o discípulo mais fiel a Jesus, e aquele que mais compreendia os seus ensinamentos. O seu conteúdo consiste basicamente em ensinamentos de Jesus para Judas, apresentando informações sobre uma estrutura hierárquica de seres angelicais e uma outra versão para a criação do universo.
Mario Jean Roberty, diretor da Fundação Maecenas, com sede em Basileia, garante que com os resultados dos testes realizados no documento pode-se afirmar, sem dar margem a dúvidas, que o texto foi transcrito entre o século III e o século IV.
O trecho-chave do documento é atribuído a Jesus, dizendo a Judas: “Tu vais ultrapassar todos. Tu sacrificarás o homem que me revestiu”. Segundo o pensamento gnóstico, esta frase significaria que com a delação Judas estaria contribuindo para que Jesus Cristo pudesse libertar o seu espírito, livrando-se de seu invólucro carnal. “Essa descoberta espetacular de um texto antigo, não-bíblico, considerada por alguns especialistas como um dos mais importantes jamais descobertos nos últimos 60 anos, estende nosso conhecimento da história e das diferentes opiniões teológicas do início da era cristã”, esclarece Terry Garcia, um dos responsáveis da revista estado-unidense National Geographic, presumindo que o original provavelmente tenha sido escrito em grego e seja datado do início do século II.
A existência do Evangelho de Judas havia sido atestada pelo primeiro bispo de Lyon, São Irineu, que o denunciou em um texto contra as heresias, na metade do século II. O bispo teria explicado neste documento que, segundo a sua opinião, nos tempos dos apóstolos aconteceram diversas tentativas de se espalhar o erro e perturbar a união dos cristãos, e que alguns faziam-se passar por convertidos, exclusivamente para disseminar doutrinas contrárias a da Fé Apostólica.
O bispo Irineu também comentou a existência de uma seita gnóstica chamada de Cainitas, cuja crença era baseada no princípio que o mundo material é imperfeito, tendo sido criado não por um Deus Supremo e sim por uma inteligência criadora inferior a este. Além de Irineu, Epifânio, bispo de Salamina, também argumentou sobre a existência desse manuscrito no ano de 375 d.C.
Elaine Pagels, professora de Religião na Universidade de Princeton e uma das mais conceituadas especialistas mundiais sobre os Evangelhos gnósticos, considera que “a descoberta surpreendente do Evangelho de Judas, bem como daqueles de Maria Madalena e de diversos outros documentos dissimulados durante quase 2000 anos, modifica nossa compreensão dos primórdios do cristianismo. Essas descobertas erradicam o mito de uma religião monolítica e mostram o quanto o movimento cristão era realmente diversificado e fascinante no seu início”.
A National Geographic consagra um longo artigo sobre o Evangelho de Judas em seu número de maio de 2006, tendo inaugurado uma exposição em 7 de abril de 2006, na sua sede em Washington, DC, onde o público pode contemplar as páginas do manuscrito. A revista, em colaboração com a Fundação Maecenas, apresentou também nos Estados Unidos e na Europa um documentário de duas horas no seu canal de TV a cabo dia 9 de abril de 2006.
Um documento histórico de muita valia para as inúmeras análises que ainda se fazem indispensáveis para melhor compreender os primeiros tempos vivenciados após a desencarnação do Homão da Galileia, um pensador que promoveu a maior revolução do agir religioso de toda a história da Humanidade.
(Publicado em 16.10.2017 no site do Jornal da Besta Fubana (www.luizberto.com) e em nosso site www.fernandogoncalves.pro.br.)
Fernando Antônio Gonçalves