UMA ESCADA ESPIRAL
Numa época onde muitos ainda não sabem diferenciar igreja de células de igrejas de cédulas, desconhecendo por completo a evolução de uma secularização iniciada na Europa no século XVI, que progressivamente vem reinterpretando mythos e Iogos, reavaliando os sentidos simbólicos das escrituras sagradas e favorecendo novas formas de espiritualidade, uma ex-freira, portadora de epilepsia quase que tardiamente diagnosticada, revela sua caminhada de fé em texto de muita sensibilidade. Uma fé em Deus, uma fé em si mesma, a perda das duas e a redescoberta delas em idas e vindas que se revigoraram em transcendentalidade independente de denominações religiosas.
Karen Armstrong, a ex-freira, é seu nome e autora do recém lançado Em Defesa de Deus, Companhia das Letras, 2011. Nascida na Inglaterra, 1944, no seio de uma família católica de raízes irlandesas, tornou-se, aos dezessete anos, noviça de uma ordem religiosa, sendo identificada, em 1965, como Irmã Martha.
Decepcionada com uma vida conventual repleta de regras quase tridentinas, Karen Armstrong abandona o convento em 1969 e orienta-se para a realização de um doutoramento sobre o poeta Alfred Tennyson, principiando a ensinar na Universidade de Londres.
Com a sua tese de doutoramento rejeitada, ela deixa de lecionar na universidade, tornando-se docente num colégio feminino, chegando a ser diretora de departamento. Da instituição foi convidada a se desligar, em 1981, devido a seus complexos problemas de saúde.
Em 1981, Karen publicou Through the Narrow Gate, relato da sua fracassada experiência religiosa, tornado best-seller na Grã-Bretanha. Apresentadora de programa de televisão que narrava a vida do apóstolo Paulo, ela mergulhou novamente no mundo das religiões, depois de anos de afastamento, decepção, crítica, raiva e rejeição. Tornou-se consagrada analista de religiões abraâmicas, atualmente investigando temas como o integrismo religioso nos tempos contemporâneos.
Karen Armstrong, hoje, ensina Cristianismo no Leo Baeck College, Londres, uma instituição formadora de rabinos. Em 1999, recebeu prêmio do Islamic Center of Southern California, por promover o entendimento entre religiões. Escreve regularmente na imprensa e muitos dos seus artigos podem ser lidos no jornal britânico The Guardian.
Em 2005, foi convidada a integrar a “Aliança das Civilizações”, um projeto incentivado pelas Nações Unidas e que conta com o apoio do primeiro-ministro espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, com objetivo maior de lançar continuados vínculos dialogais entre o Ocidente e o mundo islâmico.
Para quem se interessa em conhecer melhor a trajetória espiritual de Karol Armstrong, a Companhia das Letras lançou, em 2005, suas memórias – A Escada Espiral -, onde ela mostra que “homens e mulheres têm potencial para o divino e só se completam quando se realizam dentro de si mesmos”. No livro, múltiplas vergastadas sobre as autoridades cristãs que se arrogam proprietárias do monopólio da verdade, para tal incentivando cruzadas, inquisições, perseguições, nepotismos e guerras sanguinolentas, onde as mulheres são tidas como gênero inferior e a homoafetividade classificada como produto de estratégias satânicas.
Diferentemente de alguns sabidões e muitos sabidinhos que se auto-denominam téologos, Armstrong se classifica como “inteiramente autodidata em teologia”, proclamando-se amadora, “aquela que ama”. E gosta de citar, vez em quando, o muçulmano Ibn al Arabi, influente místico e filósofo do século XII: “Não vos prendeis exclusivamente a nenhum credo específico, para que não desacrediteis todo o resto; do contrário, não só perdereis muita coisa boa, como não conseguireis reconhecer a verdade real do tema. Deus, o onipresente e onipotente, não se restringe a um único credo, pois, diz ele, ‘para onde quer que vos volteis, ali está a face de Alá’. Todos enaltecem aquilo em que acreditam; seu deus é sua criatura, e, ao louvá-lo, enaltecem a si mesmo. Consequentemente, criticam as crenças alheias, o que não fariam se fossem justos, porém sua repulsa se baseia na ignorância”.
Karen Armstrong conclui suas memórias sem desmentir sua utopia: “tenho de subir minha escada sozinha. E, ao galgá-la, degrau por degrau, estou voltando, curva a curva, aparentemente avançando pouco, mas subindo, espero, em direção à luz”. Um balizamento que deveria ser seguido por muitos, inclusive por este nordestino, um persistente buscador do Alto. Que, pela Misericórdia Divina, teve salutares orientações de uma mente excepcionalmente espiritualizada, chamada em vida Hélder Câmara, um arcebispo transecumênico, cearense pra lá de muito arretado.
(Publicada em 11.08.2011, no Portal da Globo Nordeste, blog BATE & REBATE)
Fernando Antônio Gonçalves