UMA BRASILEIRA MUITO ARRETADA


Numa caminhada universitária depara-se com seres humanos dos mais diferenciados índices evolucionais. Dos disleriados, expressão do Jessier Quirino, nordestino da gota serena de ótimo, até aqueles que possuem uma criticidade evolucionária empreendedora capaz de catapultar múltiplas iniciativas. Em toda vida acadêmica, o fator desenvolvimento humano emociona e incentiva a continuar batalhando como professor e orientador de jovens, mesmo quando as circunstâncias discentes são majoritariamente condicionadas por ganhos imediatos, sem sonhos nem tesões.

Alguns fatos e feitos, entretanto, sobrepujam em muito a vontade de largar tudo. O existir da paulista Eliana Zagui é um deles. Ela tinha 1 ano e 9 meses quando entrou no Hospital das Clínicas de São Paulo. Vítima do último grande surto de poliomielite que o Brasil enfrentou, anos 70. Era 10 de janeiro de 1976.

Eliana viveu. Mas nunca mais deixou o hospital. Em 23 de março passado, ela completou 38 anos, dos quais mais de 36 passados entre as quatro paredes de uma UTI do Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas. Deitada numa cama, sem movimentos do pescoço para baixo, mas com todas as sensações, Eliana descobriu-se Eliana. Reconheceu-se ali, brincou ali, menstruou e virou adolescente e adulta. Respirando com a ajuda de equipamentos, com o orifício aberto no pescoço e a cânula da traqueostomia, Eliana formou-se no ensino médio, aprendeu inglês e também italiano, fez curso de História da Arte e tornou-se pintora. Em seu mundo horizontal, Eliana conheceu o amor e também o desespero, tentou o suicídio e testemunhou a morte daqueles que amava. Eliana Zagui criou uma vida.

Recentemente, Eliana publicou um livro, Pulmão de Aço – uma vida no maior hospital do Brasil, a maior parte dele escrito com a boca, agarrando com os dentes uma espátula de garganta na qual é amarrada uma caneta. E comenta: – Fiz do meu caderno algo como um saco de soco de lutadores de boxe. Escrever no papel é algo muito íntimo. Pude chorar, gritar, berrar, xingar, rir e gargalhar das coisas ridículas e saudosas.

Eliana só pode contar com a boca para escrever, pintar, virar as páginas dos livros, manusear o celular. Por isso, quando a escrita de suas memórias começou a causar muitas dores nos dentes e no maxilar, o dentista foi peremptório: ela precisava continuar a escrever no computador. Depois de muita briga, Eliana passou a digitar em um notebook. Ainda que seja com a boca, com a ajuda da espátula e da caneta, a pressão sobre os dentes e o maxilar é menor ao apertar as teclas do que ao forjar letras no papel.

O que comove bastante é saber que Eliana poderia viver em casa, com o apoio do hospital, se tivessem uma família para onde ir. Essa possibilidade nunca chegou perto de virar realidade. As visitas dos familiares são raras e sem abraços.

O livro da Eliana, ela mesmo adverte, não é um livro de pena: “Penso que todo ser humano, além de ser exemplo de vida ao seu modo, tem que viver na prática o exemplo que é. Não somos bengalas e nem amuletos da sorte”.

Na apresentação do livro, mais uma estupenda lição da Eliana: “Se fisicamente não posso andar, em minha mente sou capaz de voar sem limites. Acredito que a escrita, se tem uma função, não é a de apaziguar o leitor. A escrita tem de perturbar, cutucar, às vezes até ferir para lembrar que somos vivos, que sangramos e que nossa história está sempre em curso”

No site da editora – www.belaletra.com.br – poderá o leitor conhecer mais a Zagui. Que conseguiu até ser colocada de maca numa ambulância e dar um passeio pela cidade e, num segundo passeio, desfrutar das areias de uma praia.
A lição final que a Eliana nos proporciona: “Agradeço muito a Deus por tudo que sou e tenho, pois graças a Ele que consegui e não deixarei de lutar pelo que quero, sonho e é claro que tudo acontece conforme o Seu propósito em minha vida. Além de agradecer a Deus em primeiro lugar, agradeço às faxineiras, zeladores, seguranças, porteiros, copeiros, cozinheiras e nutricionistas, auxiliares de enfermagem, enfermeiras, técnicos de enfermagem, médicos, gasoterapia, mecânica, setor de psicologia, odontologia, radiologia, diretores em geral, relações públicas, serviço social, serviço voluntariado, amigos internautas e não internautas”.
E complementa: QUE DEUS NOS ABENÇOE INFINITAMENTE EM SUA GRAÇA
Uma brasileira muito arretada. Alguém duvida??

(Publicada em 14.04.2012, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco.
Fernando Antônio Gonçalves