UM VIEIRA AINDA DESCONHECIDO
Nas comemorações, ano passado, do quarto centenário de seu nascimento, causou espanto o desconhecimento que ainda se tem dos textos do padre jesuíta Antônio Vieira. Missionário, político, pedagogo, orador e intelectual, precursor do diálogo inter-cultural e inter-religioso, defensor dos povos indígenas, ele foi um religioso profundamente humano, sempre fiel à sua consciência. Um adensamento das leituras sobre o famoso orador iluminaria mais as estratégias nacionais, públicas e empresariais, de bem conduzir nosso país na direção de amanhãs condizentes com uma dignidade cidadã que anda um tanto esmaecida.
Boas iniciativas foram tomadas. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, com a Alameda Casa Editorial, trouxe ao público mais comprometido com a História e a Literatura do Brasil a História de Antônio Vieira, de João Lúcio de Azevedo, com um prefácio esplendorosamente esclarecedor de Pedro Puntoni, atualmente professor de História do Brasil colonial da USP. A segunda foi da Editora Globo. Que editou, do mesmo João Lúcio de Azevedo, o primeiro volume de Cartas, do padre Vieira, editadas em Lisboa e em três volumes, entre os anos de 1925 e 1928, com análise de Alcir Pécora, pesquisador do Departamento de Teoria Literária da Unicamp.
A História de Antônio Vieira, classificado por Fernando Pessoa como “imperador da língua portuguesa” se divide em seis períodos: O Religioso (1608-1640), O Político (1641-1650), O Missionário (1651-1661), O Vidente (1661-1668), O Revoltado (1669-1680) e O Vencido (1681-1697), onde relata o final da vida do jesuíta na Bahia, Salvador.
No prefácio do professor Pedro Puntoni, dois fatos pitoresos acontecidos com o padre Antônio Vieira. O primeiro se deu quando ele era ainda menino, no adro da antiga Sé de Lisboa. Diante da indagação de um cônego – “De quem sois meu menino? –, respondeu sem pestanejar: – “Sou de Vossa Mercê, pois me chama seu”. De outra feita, alguém lhe perguntou de onde ele era. Resposta: – “Vossa Mercê não me conhece”. E diante da argumentação infantil – “Eu conheço metade do mundo”, o esclarecimento definivo: – “Pois eu, Senhor, sou da outra metade”.
Para quem não deseja ler as cartas e a biografia do padre Antônio Vieira, a editora Objetiva lançou, há poucas semanas, o romance A Eternidade e o Desejo, da escritora portuguesa Inês Pedrosa. Um texto de força poética sensual, que narra a história de Clara, uma professora, que retorna a Salvador após anos de uma dramática experiência pessoal, quando se tornou cega ao tentar salvar de um tiroteio um homem que amava. E o seu retorno ao Brasil, na busca de conforto a inspiração, se faz nas pegadas dos sermões do padre Antônio Vieira. Na companhia de Sebastião, um companheiro de viagem que lhe empresta os olhos, ela visita as igrejas históricas da capital baiana, percorre novamente o Pelourinho, reencantando-se com o candomblé e os seus orixás. Para descobrir Emanuel, novamente tornando-se capaz de sentir paixão e muito desejo.
O romance traz, no desenrolar da trama e em negrito, inúmeras citações de inesquecíveis sermões do padre Vieira, duas das quais eu explicito nesta crônica, como aperitivo sedutor de primeira “entrância”: “a cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas; e tal era a dos escribas e fariseus. Homens com os olhos abertos e cegos. Com olhos abertos, porque, como letrados, liam as Escrituras e entendiam os Profetas; e cegos, porque vendo cumpridas as profecias, não viam nem conheciam o profetizado”. A outra: “O coração, os pés, as mãos, as asas, tudo vem da cabeça, que é molde da própria fantasia. Se esta for de homem, as ações serão racionais; se de águia, altivas; se de leão, generosas; de se boi, vis”.
Grande Antônio Vieira!! Que necessita ser mais lido e relido pelos que desejam uma nação bem mais altaneiramente brasileira.