UM TAL DE ZÉ DO NORTE


Nas confraternizações familiares acontecidas em dezembro último, um livro com o título acima me foi presenteado pelo próprio autor, o médico-escritor Kleber Matias, uma referência pernambucana na área hematológica, pioneiro dos transplantes de médula óssea em nosso meio. Um pernambucano arretado, nascido em Paulista, alguns anos atrás.
Ao publicar Um Tal de Zé do Norte, produção caprichada Bagaço, Matias revela, além da sua especialidade médica, três características que o tornaram muito estimado: seu humor sacárstico, sua paixão pela música popular brasileira e seu imenso amor pelos livros, sem falar dos méritos de esforçado “tocador” de violão.
Segundo testemunha Luiz Carlos Diniz, o prefaciador, Kleber Matias passou incólume, como biógrafo de Zé do Norte, de duas ciladas: sobrelevar o biografado acima dos mortais comuns e esmiuçar fatos e acontecimentos que minimizem os méritos da personalidade estudada, coisa muito do feitio dos autores contemporâneos de biografias não autorizadas.
O que Kleber Matias busca ressaltar, no estudo sobre Zé do Norte? A capacidade do interiorano nordestino de sobrepujar terríveis sofrimentos e vexames, fome, seca e privação, desrespeito dos governantes que apenas dele desejam voto e distância. Para não falar das tentativas de passar para trás quem é autor de letras consagradas. O caso de Zé do Norte é contando tintim por tintim pelo Matias, em relação a algumas das suas letras famosas, etiquetadas como de autoria de um sulista que nunca pisou numa caatinga, nem andou de pau-de-arara, embora uns bons esculachos merecesse para deixar de ser aproveitador de meia-tijela. No livro do Kleber, o “causo” está contado com todas as letras, o pesquisador fazendo comprovação de tudo.
Também conta Matias que Zé do Norte foi testemunha de miséria, banditismo e safadeza. Nesta categoria última, o autor de Meu Bem Sordade, Lua Bonita, Meu Pilão e tantas outras, presenciou, segundo ele mesmo conta em livro de memória, uma partida internacional de futebol entre brasileiros e estrangeiros acontecida em pleno sertão da Paraíba.
Por ocasião da instalação da Comissão Mista Americana, início dos anos 1920, estruturada para construir açudes na região, foi idealizada uma pelada, tudo acontecendo num feriado de 7 de setembro. Festão de arromba, uísque dando no pé da canela, muita carne para o povo presente se fartar, cervejas daquelas geladíssimas, que ainda não precisavam de mulher gostosa para ampliar vendagem. Os nossos ganharam de 1X0 e os americanos ganharam muito dinheiro da tal Comissão nos nossos costados, com a conivência de uns brasileiros cabras safados que só queriam tirar suas “lasquinhas”. O fato é escrito pelo próprio Zé, de batismo chamado Alfredo Ricardo do Nascimento: “a verba só deu para construção de casas para o conforto e bem-estar dos integrantes do projeto”.
Em seu livro de memórias, Zé do Norte conta um monte de fatos acontecidos sob seus olhos, um deles vivenciado num sábado de carnaval patrocinado pelos gringos. Quando todo mundo já estava de cara cheia de escocês pago com o dinheiro da tal Comissão Mista Americana, um dos da terra, querendo expressar seu inglês de pé de ouvido, saudou um americano galo cego: – E aí, fok-iu? A festa degenerou-se num fuzuê da goitana, bofetada distribuída pra tudo quanto é lado, até o Zé Pereira se escafedendo recheado de safanões.
Indagado pela razão do nome artístico Zé do Norte, ele deu uma explicação que merecia placa de bronze em espaço público decente: – Porque Zé é povo, e quero representar o povo do Nordeste, cantando as músicas de lá.
Vale a pena conhecer a trajetória musical e presepeira de Zé do Norte, um cabra danado de bom que num dia de muita justiça, em 1959, recebeu o título de Cidadão Carioca, sem nunca menosprezar seu passado de nordestino de poucos mil-réis. E que sentou praça no Exército, para ter bóia e dormida garantida. Um baita orgulho nacional.