UM NOTÁVEL POETA ESCONDIDO


De repente, diante das mediocridades que se tornam prósperas numa pós-modernidade que ainda não sinalizou para que veio, talentos se irmanaram na edição de um livro de poemas de um padre-poeta, ou poeta-padre, que sempre brandiu seu ineditismo como porta-estandarte de uma caminhada infensa a seitas e confrarias literárias. Refiro-me ao padre Daniel dos Santos Lima, Daniel Lima como é mais conhecido por amigos e admiradores, entre os quais Luzilá Gonçalves Ferreira, Jomard Muniz de Britto, Fernando Mota, Zeferino Rocha, Paulo Meireles e Lourival Holanda, entre poucos outros que o cercam com ampla admiração e carinho radicalmente fraternal.

Daniel Lima é um notável da poética pernambucana que tornou público, dias atrás, graças a múltiplos esforços de amigos, seu livro Poemas, o primeiro de uma série de trabalhos inéditos, 27 ao todo, “de poesia ou versando sobre assuntos referentes à ética, à estética e à política. Em um único volume, quatro livros inéditos, garimpagem cuidadosa realizada na imensa reserva do poeta. No aguardo de estudos analíticos sobre os seus enfrentamentos diante das insurgências de uma era evolucionária por derradeiro ultra-rápida.

Pode-se classificar o livro do poeta Daniel Lima como de consulta diária indispensável para quem busca libertações pessoais, profissionais e espirituais. Uma iniciativa editorial da CEPE – Companhia Editora de Pernambuco, presidida pela Leda Alves, cultura, compromisso, ética e dinamismo gerencial pró Pernambuco, com ilustração de capa do pintor José Cláudio, tintas e textos para ninguém botar senões.

Duas esplêndidas introduções balizam leitores para a poética do autor: Daniel Lima: entre o silêncio e o gesto, do professor Lourival Holanda, da Universidade Federal de Pernambuco, e A Poesia de Daniel Lima, do psicanalista Zeferino Rocha, meu líder de JEC, de quem me considero primo em enésimo grau, dada a vinculação parental da minha avó Zefinha com a prima poetisa Maria das Dores, sua excelsa mãe e também do Zildo, admiração de décadas.

O primeiro ensaio tipifica uma enfermidade que grassa na poesia contemporânea, da qual Daniel Lima se encontra vacinado: a da indigência por excesso. Que enseja uma pressa sem cuidados, favorecendo desvarios por apenas cinco minutos de fama, tudo fazendo crer “que as associações literárias apenas repetem os vícios da sociedade”, amputadas pelos “caprichos do mercado, essa lei letal às letras”. Holanda classifica Daniel Lima: “diferentemente dos poetas aplaudidos, valendo pela eletricidade de suas performances e presenças – que desaparecem quando as mãos silenciam, em Daniel a poesia é menos espetáculo e mais aventura espiritual, o desafio de rearrumar mundo e sentido”. Inclusive nos momentos de chicotear os que se imaginam arrogantemente superiores aos deuses, numa contemporaneidade cientificista cada vez menos humanista: “O intelectual é um urubu / que se julga vestido / mas que está nu, / com uma pena de pavão / enfiada / no cu.” Ou eivado de uma contrição digna de figurar nos breviários religiosos não-hipócritas: “Eu, pecador, me confesso aos homens de meu tempo. / Fiz versos fúteis, olhei a vida de esguelha, / fiz que não vi, não quis sujar as mãos / então fiz versos sociais e protestei / na sala de jantar, entre amigos, baixinho, / retoquei-me no espelho, / fingi não ver os rostos dos que sofrem, / fiz altas filosofias sobre a dor do mundo / fui cisne ornamental de lago parnasiano e azul. / Resta-me agora o consolo, a vergonha / de pedir perdão aos homens de meu tempo / eu, pecador confesso e descarado.” E também mostra um poeta muito consciente das suas limitações diante da realidade golpista de 1964: “As patas dos gorilas pisam / o coração da pátria, / e eu, por trás do muro. / O povo saqueado e corrompido, / e eu, como se fosse um deus, / nenhum remorso sinto. / E prefiro enganar-me / acusando o destino / por minhas omissões e safadezas.”

Resolutamente, Daniel Lima reconhece que o caminho sempre deve ser feito andando, arrostando com sagacidade os poderosos de plantão, ultrapassando os terrenos umbráticos que vendem ilusões moralistas e porta-estandartes puritanos encardidos de intenções nunca libertárias: “O mais perigoso é não arriscar. Então, / perde-se tudo ou, pelo menos, perde-se o / melhor: a esperança de ganhar tudo. / É na segurança exigida para agir, que o homem / ‘prudente’ se perde, pois a segurança / funda a mediocridade do coração. Ela leva / ao apodrecimento da vida, cortando as asas / aos voos, ao desejo de libertação”. E se desabafa diante de um cotidiano cumpliciado com a mediocridade mundial reinante: “Se me permitires que eu blasfeme agora, / verás, Senhor, que essa blasfêmia / é apenas / um jeito de oração de amor magoado”.

Na apresentação de Zeferino Rocha, inteligência para muitos elogios, é ressaltado o dom do poeta em ver o essencial das coisas, tornando-se “arauto do invisível”, posto que “fazer existir o inexistente, é toda a glória de ser poeta”. Rocha ressalta os temas existenciais abordados por Daniel Lima: a dialética da vida e da morte, a fugacidade e efemeridade do tempo, o valor único dos instantes, o homem sempre como ser em viagem. Segundo Zeferino, o poeta é conclusivo: “diante do mistério da vida e da morte, é preciso reconhecer que as palavras pouco podem dizer. Para qualquer forma de conhecimento, ‘toda palavra apenas aproxima, chega perto, mais perto, e traça um tênue esboço daquilo que intenta revelar’”. E o psicanalista revela o jeitão de ser do poeta: “Impressiona-me a maneira tranquila e familiar que Daniel Lima aborda o ministério da morte. Ele não a imagina solene ou majestosa, nem quer que ela venha ao seu encontro marcada de grandeza ou esplendor”. O poeta a quer “simples e calma, sem ruídos, morte discreta e irmã / De voz suave, de passos brandos e rosto quase alegre”. E Zeferino Rocha conclui de um modo soberbamente feliz, que bem poderia ser apreendido por todos aqueles que se imaginam sócios ou sósias de Deus: “para Daniel Lima, o encontro com a Morte está profundamente vinculado ao Encontro com o próprio Deus, pois ela nos vem de Deus no tempo exato e, por isso, ‘é do fim de tua viagem que vem toda a significação / de cada coisa que te acontece no caminho. / Não peças, pois, a nenhuma delas / explicação definitiva. / Aguarda a hora de Deus’”.

Se Daniel Lima proclama que “a esperança é o horizonte / o desespero é o muro. / E a vida é o horizonte além do muro”, saibamos todos assimilar convictamente uma muito salutar recomendação sua, numa conjuntura mundial de múltiplas perplexidades, inclusive até com data e hora idioticamente marcadas para o final dos tempos: “Eu vivo de horizontes. Não chego, mas caminho. Não encontro, mas busco. Ainda não sou, vou sendo”.

O livro Poemas, do poeta escondido Daniel Lima deveria tornar-se pilastra-mor de uma espiritualidade laica distanciada das cavilosidades purpúreas e dos abastardamentos dos mediocremente sempre pequenos. Sob todos os prismas.

PS Agradeço ao extraordinário médico-humanista Paulo Meireles, em plena atividade do labor clínico em seu consultório no Hospital Português, pela oportunidade que me proporcionou de ler o livro do poeta Daniel Lima, daqui por diante um vade-mécum pessoal para sonhos pretensos e caminhares mais confiantes.

(Publicado em 23/05/2011, no Portal da Revista ALGOMAIS, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves