UM ING DE MUITA VALIA


Durante o período dos guias eleitorais, televisivos e radiofônicos, nada melhor que leituras e bate-papos esclarecedores com gente que entende, favorecendo análises mais cidadãs e menos emotivas sobre a escolha dos candidatos a serem sufragados no próximo mês de outubro, quando o país alcançará um patamar civilizatório mais participativo.

Conversando com o João Silvino da Conceição, um papo analítico entusiasmante, aplaudidor de carteirinha das pensações do ex-parlamentar Egídio Ferreira Lima, um oitentão gota serena de bem antenado, ele me recomendou a entrevista concedida pelo mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, à revista Caros Amigos, número 160/2010. Sgundo ele, uma análise muito bem feita, que deveria ser entrelaçada com o dossiê A Era Lula, publicado pela revista CULT, número 148, envolvendo especialistas em política, economia, movimentos sociais, cultura e educação, que descrevem oito anos de um mandatário dotado de consagrador apoio populacional às vésperas de entregar o bastão presidencial. A primeira leitura bem mais sedutora que os textos do dossiê por isentar-se dos tecnicismos que em múltiplos momentos “astravancam” as “iluminuras raciocinativas” dos não-iniciados.

O papo na casa do João Silvino, sábado passado, regado a “guaranás” e um sarapatel daqueles, elaborado a capricho por dedicada pós-graduada em assuntos cozinhadores, transcorreu num clima de muito entusiasmo, cabendo ao Severino de Mazé e companheira resumir para todos a entrevista do Frei Betto, em cópias xerocadas que mereceram elogios gerais. Com a devida permissão do casal Biu-Mazé transcrevo o resumo da entrevista do frade dominicano, jornalista, escritor e autor de mais de cinquenta livros, o mais recente intitulado O Calendário do Poder. Além disso, “contemplado” com quatro anos de cadeia, a vocação para o escrever advinda de um pai que tinha duas manias incompatíveis: padaria e livraria, um advogado de extrema direita que migrou para a extrema esquerda, terminando sua vida profissional como juiz. E ainda de uma mãe também famosa pelos livros de culinária que dão água na boca e a vontade de mordê-los, tamanha a belezura das receitas.

Eis a síntese distribuída:
– Frei Betto nunca foi padre nem militante do PT. Sua amizade com o presidente Lula emergiu na Pastoral Operária do ABC, onde trabalhou por vinte e dois anos.
– Classifica o governo Lula como “o melhor da história republicana do Brasil”, muito embora o PT e o grupo hegemônico que o comanda “tenham trocado um projeto de Brasil por um projeto de poder”.
– Companheiro de infância do Henfil, começou muito precocemente a ler filosofia, teologia e literatura.
– Eleito presidente da JEC, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde residiu numa república de estudantes de 62 a 64, na companhia de Betinho e José Serra, este, depois, presidente da UNE.
– Em 64 ingressou na faculdade de jornalismo da Universidade do Brasil, tendo sido aluno de Tristão de Ataíde, Hermes Lima, Barbosa Lima Sobrinho e Danton Jobim.
– Resolveu ser dominicano aos vinte anos, considerando “essa ideia de seminário muito antipedagógica, até desumano você colocar uma criança de 13, 14 anos no seminário. Eu acho que é por isso que tem tanto problema de pedofilia”.
– Embora respeitando os que solicitaram, nunca pediu indenização ao Estado brasileiro, pois não desejava transformar uma questão política em um questão financeira. Segundo ele, “acho que tem muita gente que foi com sede ao pote de ouro, gente que recebeu indenizações milionárias e foi interrogado, esteve uma semana preso. Acho que virou uma farra esse negócio”.
– Lamenta até hoje que o Estado brasileiro não tenha pedido perdão à Nação pelo erro que ele cometeu. Segundo ele, “essa é uma dívida inclusive do governo Lula, que devia pedir perdão, em nome do Estado, assim como o papa pediu perdão à humanidade pela condenação de Galileu e Copérnico”.
– Frei Betto gostaria de ver abertos os arquivos das Forças Armadas, como um modo pedagógico de não abonar as torturas até hoje praticadas Brasil afora por policiais civis e militares.
– Trabalhou cinco anos numa favela de Vitória, ES.
– Lamenta ter o PT, ao chegar ao poder, cooptado uma parcela importante do movimento social brasileiro. Diz que “a CUT hoje representa muito mais o governo junto ao trabalhador do que os trabalhadores junto ao governo”.
– Lamenta o Fome Zero ter sido assassinado pelo próprio governo. No lugar dele, um programa de caráter emancipatório, surgiu o Bolsa Família, um programa de caráter eminentemente compensatório.
– Frei Betto diz que “a maior concessão que o atual governo fez é na parte econômica, onde se joga quase trezentos bilhões de reais para fomentar a especulação no mercado financeiro, aplicando-se apenas 44 bilhões na saúde, um pouco menos na educação”.
– Segundo Betto, “a principal crítica que eu tenho é que serão oito anos sem nenhuma reforma estrutural, nem agrária, nem a tributária, nem a política, nem a da saúde, nem da educação”.
– Quanto à esquerda brasileira, a esquerda ideológica sumiu. Um bocado de teóricos que não conhecia o povo. Quando o Muro de Berlim caiu, eles se tornaram burgueses sem culpa. E há os que ainda professam convictamente que o capitalismo é humanizável, reformável, trocando o projeto de um povo, de emancipação nacional, por um projeto pessoal ou coletivo de poder.

Identificando-se como um ING – Indivíduo Não-Governamental, Frei Betto adquiriu duas grandes convicções. A primeira: governo é que nem feijão, só funciona na panela de pressão. A segunda: o governo não muda ninguém, o poder faz as pessoas se revelarem.

Reforçar os movimentos sociais, eis o desafio do atual momento histórico, posto que “não vejo futuro para a humanidade sem a partilha dos bens da terra e dos frutos do trabalho humano”.

Terminado o papo, o entusiasmo coletivo nas cumeeiras, um telegrama foi enviado ao Betto, visitador frequente do saudoso Hélder Câmara: “Lemos coletivamente sua entrevista na Caros Amigos. Você continua flórida!!” Um modo sutil de driblar os Torquemadas de plantão.

(Publicada em 26.08.2010, Portal da Globo Nordeste, blog BATE & REBATE)
Fernando Antônio Gonçalves