UM ENXERGANTE SÉCULO 21


Diante da crise de proporções incalculáveis que se abate sobre o Vaticano, a última traulitada desferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que resolveu não decidir sobre a imunidade da Santa Sé nos processos de pedofilia abertos recentemente, um livro lançado pela editora Paulus poderia ampliar as enxergâncias de uma cúpula eclesiástica que persiste em não se livrar das tradições medievais que impossibilitam a redução do centralismo romano, a democratização do autoritarismo eclesiástico, o acesso da mulher ao sacerdócio, o direito de votar na eleição dos bispos, a supressão do celibato obrigatório, o fim dos seus códigos doutrinários esdrúxulos, como se ainda estivéssemos nos tempos anteriores ao século XVI, quando imperavam os medos sobre um Deus que se irava, punia e exigia os sacrifícios mais díspares para os que não seguissem ovelhosamente as diretrizes estabelecidas. Hoje, a Cúria Romana é uma engrenagem ingovernável e reumática que custa anualmente ao Vaticano 102,5 milhões de euros. No Vaticano trabalham 2.748 pessoas. Delas, 778 são eclesiásticos, 333 são religiosos e 1.637 são leigos (destes, 425 mulheres).

O livro foi lançado no Brasil com o título Outro Cristianismo é Possível – a Fé em Linguagem Moderna e tem por autor o jesuíta Roger Lenaers, atualmente com saudáveis 85 anos. Desde 1995 é pároco na Áustria, após requerer sua aposentadoria de um colégio da Bélgica flamenca, onde ministrava orientações em didática das línguas antigas, seus interesses maiores sendo a fé emergente na modernidade e pós-modernidade, secularização e linguagem compreensiva ao ser humano, sem mais os pés de argila da fé medieval da Igreja. Segundo Lenaers, “para o homem ocidental do terceiro milênio, a linguagem da tradição cristã se tornou um idioma estrangeiro, uma língua para iniciados, acessível somente para esta porção cada vez menor da população que ainda lida com as representações do passado”.

Em um outro texto, Sonho de Nabucodonosor ou O Fim de uma Igreja Católica Medieval, Lenaers sustenta que “a Igreja Católica no Ocidente está em declínio devido a uma mutação cultural que começou na Europa nos séculos XVII e XVIII com o surgimento da ciência moderna”. Segundo ele, os fenômenos que antigamente haviam sido atribuídos a poderes sobrenaturais transformaram-se em causas naturais, independente do mundo divino, ainda que a maioria do cristianismo se mantivesse associado à linguagem e às imagens da Idade Média, tornando-se as instituições objetos estranhos ao mundo moderno.

No capítulo primeiro do lançamento Paulus, Roger Lenaers adverte os ovelhosos de plantão: “não o leia caso não tenha nenhum problema com a Igreja Católica Romana, com sua maneira de pensar e de falar, com seu código de conduta, com sua doutrina e sua forma de aparecer em público, com o modo como ela se faz visível e audível para dentro e para fora. Leia-o somente se acredita que as coisas não podem continuar como estão na Igreja Católica, e se gostaria de saber como deveriam continuar. Do contrário, vai se aborrecer, e não vai ser pouco”.

Lenaers sugere uma nova maneira de falar de Deus. Uma nova interpretação que provoque consequências em toda a doutrina da fé católica, envolvendo novos modos de se falar de Deus na pessoa de Jesus, vida após a morte , sacramentos, pecado, redenção, sacrifício, a oração de súplica e de outros temas centrais, configurando uma tradução fiel embasada na modernidade, atualizando uma mensagem anteriormente transmitida num linguajar medieval tradicional.

O padre Lenaers, com sua visão crítica e pesquisadora, aborda ainda outras questões teológicas: a Sagrada Escritura como fonte de fé, o mistério da ressurreição e a última ceia, entre outras. No capítulo “Os cinco assim chamados rituais de passagem”, ressalta os desafios na atuação da Igreja no que diz respeito ao batismo, à confirmação, à unção dos enfermos, à ordenação sacerdotal e ao matrimônio.

O volume está dividido em 19 capítulos, escritos numa linguagem clara, simples e objetiva, fator que contribui para uma leitura atraente. Na editora Paulus é a segunda publicação da coleção Tempo Axial, termo muito utilizado por Karl Jaspers, que indica a ideia de um tempo crucial no qual as ideias mudam radicalmente. Os especialistas afirmam que “sem a abertura de um debate transparente e coletivo sobre os erros do passados e as escolhas do futuro, a crise da Igreja está destinada a se agravar”.

Com uma enxergância notável, nos seus 85 anos, Roger Lenaers nos convida, nas sedutoras páginas do seu ivro, a afastar-se da rotina, enfrentar o desconhecido e motivar-se para adquirir novos saberes, uma trilogia capaz de resistir à “tentação do ótimo”, sem qualquer dúvida o maior inimigo do bom. Sem jamais perder a convicção de que o justificatório, o lamentatório, o comparatório, o esperatório e o protelatório são os principais componentes patológicos das depressões religiosas da atualidade. Sempre recordando que o papa Gregório XVI, tridentinamente em 1832, condenava a ideia de liberdade de consciência como “um absurdo e um devaneio de perturbados mentais que emana da hedionda fonte do indiferentismo”.

PS. Viva Tereza d’Ávila, uma mulher de enxergância esplendorosa! Que pugnava, como milhões de outros, por um Cristianismo renovado, jamais démodé.

(Portal da Revista ALGOMAIS, 05/07/2010, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves