UM ENSAIO NOCAUTEADOR


Raras vezes um livro me provocou tanta vergonha como o que acabo de ler, muito embora ampliando ainda mais a minha solidariedade para com os despossuídos: A Fome, de Martín Caparrós, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2016, 714 p. Um ensaio que impressiona, incomoda, fascina e desacomoda todos aqueles que ainda são possuidores de “duas mãos e o sentimento do mundo”, como bem proclamou um amado talento poético brasileiro chamado Carlos Drummond de Andrade.

O autor, argentino nascido em 1957, graduou-se em História pela Universidade de Paris e percorreu meio mundo – Bangladesh, Niger, Quênia, Sudão, Madagascar, Argentina, Estados Unidos e Espanha – entrevistando pessoas que, por diferentes motivos – secas, miséria, guerras, marginalizações as mais diferenciadas – sofreram estupidificantes privações alimentares.

Numa das orelhas, a primeira, uma definição do livro: “A Fome é um livro construído a partir de histórias dos que trabalham em condições bastante precárias para mitigá-la e daqueles que usam o alimento como meio de especulação financeira. A Fome tenta, sobretudo, destrinchar os mecanismos que impedem quase um bilhão de pessoas de suprir sua necessidade de alimentação.” E explicita alguns questionamentos que estão a merecer um vigoroso repensar civilizatório de todos nós: “Seria a fome um produto inevitável de nossa ordem mundial? Fruto da preguiça e do atraso? Um negócio de poucos? Um problema prestes a ser solucionado? O fracasso de uma civilização?” E arremata: “Este é um livro incômodo e apaixonado, uma crônica que faz pensar, um ensaio que relata e um panfleto que denuncia a pressão de uma vergonha incessante e que busca formas de acabar com esse mal.”

Ao iniciar a leitura do livro-bofetada do Caparrós, lembrei-me da Geografia da Fome, do pernambucano Josué de Castro, e de um poema de Manuel Bandeira, outro pernambucano ilustre, intitulado O Bicho, que dizia: Vi ontem um bicho / Na imundície do pátio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade./ O bicho não era um cão, / Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem! Nunca esquecendo um outro pernambucano muito arretado chamado João Cabral de Mello Neto, autor no inesquecível Vida e Morte Severina, que muito sensibiliza quantas vezes seja apresentado.

Para Caparrós, a imagem da fome mais antiga registrada em sua mente é a de um menino com a barriga inchada e as pernas magrinhas de uma região chamada Biafra, quando ele ouviu pela vez primeira a versão mais brutal da palavra fome: hambruna, que não tem correspondência em língua portuguesa, a significar fome generalizada. Um fenômeno que é escândalo do nosso século, “a destruição, a cada ano, de dezenas de milhões de homens, de mulheres e de crianças pela fome, onde de cinco em cinco segundos, uma criança de menos de 10 anos morre de fome em um planeta que é repleto de riquezas. Em seu estado atual, de fato, a agricultura mundial poderia alimentar sem problemas 12 bilhões de seres humanos, quase duas vezes a população atual. Uma criança que morre de fome é uma criança assassinada, escreve Jean Ziegler, ex-relator especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação.” E indaga repleto de indignação: “Como, porcaria, conseguimos viver sabendo que essas coisas acontecem?”

Uma descrição feita por Caparrós, logo no primeiro capítulo, atordoa, sem resvalar para pieguices, tampouco fazendo uso lacrimoso da dor alheia: “Quando um corpo come menos do que precisa, começa a comer suas reservas de açúcar; depois, as de gordura. Cada vez se movimenta menos: fica letárgico. Perde peso e perde defesas; seu sistema imunológico se debilita, por momentos. É atacado por vírus que provocam diarreias que o vão esvaziando. Parasitas que o corpo não sabe mais rejeitar instalam-se em sua boca, causam imensas dores; infecções bronquiais dificultam a respiração e doem muito. Por fim, começa a perder sua pouca massa muscular: não consegue ficar mais ficar de pé e depois perde a capacidade de se movimentar; dói. Se acocora, fica enrugado, sua pele enfraquece, fica quebradiça; dói. Chora devagar; quieto, espera acabar.”

Segundo pesquisas por nós feitas, “as últimas décadas foram de grande evolução no combate à fome em escala global. Nos últimos 25 anos, 7,7% da população mundial superou o problema, o que representa 216 milhões de pessoas. É como se mais que toda a população brasileira saísse da subnutrição em menos de três décadas. Contudo, 10,8% do mundo ainda vive sem acesso a uma dieta que forneça o mínimo de calorias e nutrientes necessários para uma vida saudável, e 21 mil pessoas morrem diariamente por fome ou problemas derivados dela.”

Nos países subdesenvolvidos, uma em cada sete crianças morre antes de completar 5 anos; nos países desenvolvidos, morre uma em cada 150. Mas as mortes das crianças não aparecem nos meios de comunicação. Nem poderiam: a cegueira moral e a perda da sensibilidade social na modernidade muito contribuem para distanciar tais tragédias cotidianas das consciências humanas.

Um ensaio incomodativo, as informações reveladas por Martín Caparrós, um argentino nascido em 1957, em Buenos Aires, autor de mais de 30 livros, também detentor de vários prêmios internacionais, inclusive o conferido pelo Rei da Espanha. Também tradutor de Voltaire e Shakespeare.

Vale a pena ampliar nossa solidariedade social, apesar de todas as nossas dificuldades.

PS. Sinto asco do tecnocratês, uma barreira cretinamente edificada para evitar a generalização do conhecimento. Atualmente, fome é “insegurança alimentar”. Segundo Caparrós, “um dos eufemismos mais tristes de uma época de eufemismos tristes.”

(Publicado em 13.02.2017 no site do Jornal da Besta Fubana e no site www.fernandogoncalves.pro.br)
Fernando Antônio Gonçalves