UM CARIOCA TODO ESPECIAL
Tenho um apreço gigante por biografias instigantes, esclarecedoras de ontens por mim não vivenciados, de personagens que marcaram caminhadas existenciais vivenciadas em tempos de botas e torturas, mortes e exílios, descompassos históricos e dedurismos civis de quilates variados.
Na Universidade Católica de Pernambuco, turma de economia graduada em 1966, as ideias eram debatidas com certa parcimônia, sem entusiasmos maiores, muito embora já se manifestassem, vez por outra, acirramentos ideológicos entre reacionários, conservadores, reformistas e revolucionários, alguns estudiosos e muitos apenas entusiastas sem discernimentos analíticos.
Na residência dos meus pais, uma prateleira da estante continha as obras de Gilberto Freyre, de quem meu querido velho era admirador desde os idos de 40, e de um pensador cristão chamado Tristão de Athayde, pseudônimo do crítico literário e jornalista Alceu Amoroso Lima, um carioca nascido em 11 de dezembro de 1893, convertido ao catolicismo em 1928, portador de uma portentosa cultura humanística, além de humildade sem subserviência, coragem cidadã, criatividade ímpar e inteligência muitos furos acima da média dos possuidores de boa vontade e alma pura.
De conservador a progressista, Alceu adensou seu pensar analítico a partir do Golpe Militar de 1964, condenando os procedimentos ditatoriais, denunciando as transgressões às leis, sempre defendendo o direito à liberdade. Foi amigo de ateus e de pessoas das mais variadas tendências religiosas, cotidianamente verberando contra as doutrinações que buscam cooptar, sempre admirado por talentos pátrios como Carlos Drummond de Andrade, Barbosa Lima Sobrinho e Dom Luciano Mendes de Almeida, também sofrendo inúmeras rebordosas de vários reacionários, tanto da Igreja Católica como de intelectuais mais voltados para as casas grandes do que para as senzalas de então.
Eis o pano de fundo do que a Azulsol Editora, São Paulo, acaba de publicar Histórias de meu avô Tristão, a biografia de Alceu Amoroso Lima, de Xikito Affonso Ferreira (Carlos Eduardo Affonso Ferreira), neto do biografado, um cidadão convertido, adversário vigoroso de um catolicismo de formalidade apenas decorativa, de não fingidas pompas e subserviências ao poder político conservador, migrado para o social por influência das ideias de Jacques Maritain, a parir de dois livros do filósofo francês: Humanismo Integral e Cristianismo e Democracia. Um cristão convencional convertido que, em 1935, defendia o autoritarismo do General Francisco Franco, apenas através do pensador francês iniciando sua travessia para posicionamentos de esquerda libertária, jamais sectária, não marxista.
O prefácio do livro é de autoria do escritor e jornalista Gilberto de Mello Kujawski, que narra como a biografia foi estruturada pelo neto do “mais importante líder católico do seu tempo, sem esquecer o opositor resoluto à ditadura militar desde que esta desmascarou sua sanha antidemocrática”. E como o neto, a partir da sugestão da tia Tuca (Irmã Maria Teresa, filha de Alceu e freira enclausurada), soube reconstruir os passos existenciais do avô, de Anatole France e Eça de Queirós, céticos adoráveis, até o encontro com Jackson de Figueiredo, que orientou G.K. Chesterton, cujo livro Ortodoxia “desmonta o racionalismo e o agnosticismo com ironia ferina e lógica muito superior ao raciocínio trivial dos inimigos da fé, como se fé e ciência fossem instâncias reciprocamente excludentes”, transmitindo a Alceu a capacidade de ver “o extraordinário no cotidiano”. E o encontro com Leonel Franca na reta final da conversão, dá início à segunda fase da sua caminhada intelectual, “um catolicismo de espada na mão, tipo ‘crê ou morre’, belicoso e intolerante, em guerra declarada contra o materialismo burguês e o ateísmo comunista”. Impulsionando Alceu na direção do Integralismo, doutrina totalitária de índole fascista liderada por Plínio Salgado, dada sua aversão ao inconformismo burguês. Um caminho evitado pela leitura da encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII, que propunha a participação dos fiéis no movimento operário. Amplamente embasada pelas contribuições seminais do filósofo francês Jacques Maritain, mais tarde mestre e amigo do convertido.
Seguramente uma biografia que faltava, a do Alceu Amoroso Lima, “professor, crítico literário, escritor, sociólogo, filósofo, jornalista, censor da ditadura militar com suas barbaridades, o líder religioso”. Com uma descrição do próprio neto, autor do livro que estava faltando nas prateleiras dos cristãos e não-cristãos brasileiros: “Alceu é alguém leve em relação à sua identidade, à sua persona. Nem a extensa obra, nem a ampla repercussão de suas ideias ou o fardão de acadêmico não lhe sobem à cabeça. Embora saboreie tudo isso que lhe dá prestígio, não chega a entesourá-lo. Dito em outras palavras, Alceu não transforma seu reconhecimento público em orgulho e autossuficiência. Sua naturalidade é preservada, ele tem em estado puro o jeito descontraído do carioca e não se leva demais a sério, guarda humor sobre si próprio”.
Uma biografia encantadora, a de Alceu Amoroso Lima, vacina perfeita para os pedantes esquerdocratas contemporâneos, que se imaginam, hedonisticamente, “sócios de Deus”.
Fernando Antônio Gonçalves
Recife, novembro 2015