TEMPOS DE MUTAÇÕES
TEMPOS DE MUTAÇÕES
Luiz Alberto Gómez de Souza (*)
Luiz Alberto Gómez de Souza (*)
Sempre reagi contra a idéia de uma secularização linear, com o declínio inevitável do sagrado. Este está profundamente presente em nossas sociedades, mas num mundo pluralista e de pós-cristandade. E nem sempre nós católicos soubemos entender esses novos tempos e viver um outro clima(1).
O filósofo católico Pietro Prini, num livro provocador, falou de um cisma oculto ou subterrâneo (scisma sommerso), a partir de uma quebra de comunicação entre a Igreja e a sociedade: “O ‘aggiornamento’ da Igreja no mundo contemporâneo, iniciado no Concílio e continuado por uma geração de teólogos excepcionalmente preparada e aberta, foi estancado nos últimos anos, logo quando era necessário ter a coragem de confrontar a Fé com os resultados doutrinários e metodológicos das ciências antropológicas de hoje”. Rompeu-se a comunicação entre o emissor da mensagem com seus códigos tradicionais (a Igreja) e o receptor contemporâneo com sua nova sensibilidade e novas necessidades. Sempre deve haver uma reciprocidade ativa entre quem envia e quem recebe uma mensagem. Este último não é um ser passivo, que acolhe com indiferença enunciados gerais, a-históricos ou passadistas, mas com uma qualificação psicológica, mental, social e histórica precisa(2). Uma linguagem em descompasso histórico passa a não dizer-lhe grande coisa. Seu comportamento vai se configurando à margem de normas e prescrições que lhe parecem estranhas ou incompreensíveis.
Frente a uma ética e a receitas com invólucros de outros tempos, muitos fiéis não entram em heresia (negação de uma doutrina), mas tomam um distanciamento da autoridade (distacco em italiano), que caracterizaria mais bem um cisma de fato, um não recebimento de uma mensagem ou ordem na qual não descobre sentido. Não se trata propriamente de indiferença, mas de um processo de filtragem. Isso fica claro no que se refere à ética da sexualidade (uso de anticoncepcionais, por exemplo). As falas do magistério podem perder-se no vazio da não-comunicação. Uma pesquisa para o New York Times, em 1993, do jornalista católico Peter Steinfels, indicava que 8 entre 10 católicos norte-americanos não aceitavam a afirmação de que o uso de métodos artificiais de controle da natalidade era errado; 9 de cada 10 consideravam que alguém que utilizasse métodos artificiais poderia ser um bom católico(3).
Prini fez a crítica a um certo “personalismo substancial” que se baseia numa noção de essência imutável, para contrapô-lo a um “personalismo intersubjetivo”, baseado na intercomunicação e na troca de conhecimentos e de sensibilidades(4). É praticamente o “personalismo comunitário” de Emmanuel Mounier e a relação Eu-tu de Martin Buber(5). A doutrina não teria de adaptar-se passivamente a novas exigências, o que seria cair num relativismo ético, mas tratar de entender os novos códigos de linguagem, rever-se sem renunciar a solidariedades profundas, integrar novas descobertas e entrar em sintonia fina com a consciência histórica em transformação. Aliás, a noção de “consciência histórica”, que aprendemos na JUC dos anos 60 com nosso mestre Pe. Henrique de Lima Vaz, nos ajudaria a esse respeito(6).
Uma nova agenda para a Igreja teria de partir das premissas acima enunciadas. Começamos com os grandes temas do mundo de hoje, que deveriam fazer parte dessa agenda atualizada da Igreja. Mas ao lado deles, temos os outros, em sua vida interna. Para usar termos dos tempos do Vaticano II, elementos ad extra e ad intra. Há que partir dos primeiros, para evitar uma visão apenas voltada para dentro da instituição.
O Vaticano II foi o esforço tardio de encontro da Igreja com o mundo moderno, ela que tivera tanta dificuldade para entendê-lo e vivera, no começo do século XX, a “crise modernista”. O concílio terminou em 1965 e, três anos depois, em 1968, foi emergindo na rebelião dos jovens a consciência de uma modernidade em crise e o prenuncio de uma nova época. Evito falar de pós-modernidade, por julgar esse conceito ainda moderno (visão linear da história, do pré ao pós) e marcado por uma visão fraturada e carente de sentido da história. A tradição judeu-cristã se distancia dessa ótica desconexa. Mas de toda a maneira, foi se manifestando uma ruptura. Novos tempos aquarianos, cantavam os jovens da contracultura.
Já em 1932, Emmanuel Mounier pressentira uma crise de civilização à frente e propunha um programa de recomeço: “refazer a renascença”, tempo em que surgira a modernidade(7). Em meu livro, A utopia surgindo no meio de nós, me estendo sobre esse processo complexo que vai além de mudanças políticas ou econômicas e assinala também uma verdadeira mutação social, psicológica e cultural(8).Uma primeira grande tarefa seria de entrar em sintonia com essa idade nova(9) e seus “sinais dos tempos”, de entender criticamente seus códigos, em reciprocidade ativa.
Mas esses novos tempos aprofundaram as desigualdades na sociedade e entre as nações. Ao mesmo tempo, mundo do desenvolvimento tecnológico e da exclusão social. Mundo do pobre. Nunca é mais atual e irrenunciável a opção preferencial pelos pobres, pelos “condenados da terra” (Fanon). D. Hélder não conseguira, no Vaticano II, num clima basicamente europeu, introduzir com centralidade a idéia de Igreja dos pobres. Ela chegou em Medellín e em Puebla. Por eles e seu “potencial evangelizador” (Puebla, nº1147) se concretiza a universalidade da salvação de todos os homens e mulheres.
Os novos sujeitos históricos deverão ser levados em conta. Entre eles, os mais contestadores e desafiantes são as mulheres. De certa maneira, os movimentos femininos são os subversivos por excelência, já que põe o dedo na mais antiga das dominações, a patriarcal. Num primeiro momento, através das sufragistas, exigiram igualdade de direitos. Mas freqüentemente o dominado, para achar espaço, tem de seguir o modelo do dominador. Igualdade sim, mas com direito à diferença, sem precisar copiar e repetir o mundo masculino.
O imperialismo ocidental impusera o mundo branco. Outras etnias se rebelaram. No Brasil, os movimentos negros irromperam com vigor, denunciando os racismos larvares ou explícitos num país escravocrata até bem pouco atrás. E recuperaram sua cultura, seus valores, sua espiritualidade e tradições religiosas. Na América, as comunidades originais redescobriram sua força, seus hábitos e sua maneira de ser e de viver, dos valentes araucanos do sul do continente, aos quéchuas, aimaras, os povos centro-americanos, do México, dos Estados Unidos e do Canadá. O zapatismo, no México, foi a grande manifestação de um povo que reivindica sua identidade, superando altaneiro seus complexos ancestrais e surgindo como sujeito político e social.
A categoria da diferença, lançada pelas mulheres, impôs o pluralismo de um universal das diversidades, numa perspectiva intercultural. Mas a sociedade foi também superando uma visão antropocêntrica e descobrindo as múltiplas dimensões da vida no planeta terra. Direitos da pessoa, mas também direitos do planeta, ensinou Theodore Roszak(10). A terra como grande útero, fonte da vida, mãe Gaia (Lovelock). Há uma nova sensibilidade ecológica, num planeta ameaçado pela destruição.
O chamado mundo pós-industrial trouxe grandes transformações na informática, na robótica, na engenharia genética e na biotecnologia. Mundo interligado pela internet; há uma intensa intercomunicação e intercâmbio. A robótica, a largo prazo, libera o homem de trabalhos pesados mas, mais imediatamente, dispensa mão de obra e leva à desocupação. O processo é contraditório. A engenharia genética abre insuspeitados caminhos de intervenção na fonte da vida, com terríveis ambigüidades: ampliação dos horizontes da saúde e do bem-estar, manipulação perigosa de aprendizes de feiticeiros. A bioética está ainda balbuciante e caminha indecisa e questionadora(11). São mais as interrogações do que as pistas de respostas.
Aliás, essa é uma característica do mundo moderno. A rapidez das transformações coloca sempre novos desafios e situações inéditas. Isso obriga a análises cuidadosas, sem respostas definitivas ou unívocas. A Igreja, habituada a um mundo tecnocientífico bem mais simples, muitas vezes quis dar orientações taxativas para todo tipo de comportamento humano ou decidir inflexível sobre as teorias científicas. Seu equívoco diante de Galileu levou a um arrependimento tardio. Isso pode repetir-se diante de novos horizontes.
E aqui se abre o complexo campo da ética das relações humanas, do corpo e da sexualidade. Há um diálogo de surdos com o mundo a esse respeito e uma verdadeira esquizofrenia entre normas proclamadas e práticas habituais(12).O tema do prazer é, com certa facilidade, ligado à culpa e ao pecado, numa denúncia de uma civilização hedonista, que pode ter uma certa parte de razão, mas que não esconde um pessimismo sobre a natureza humana na velha tradição jansenista. A prática sexual é muitas vezes reduzida a uma necessidade de reprodução da espécie e a um “remédio diante da concupiscência” e não ao desenvolvimento das relações corporais da inter-relação humana, no que tem de enriquecedora e prazerosa. Pietro Primi propõe uma nova ética interpessoal da sexualidade, na reciprocidade corpórea do amor, no prazer comunicativo(13). Não se trata de aceitar um vale tudo ou uma permissividade egocêntrica; mas, ao contrário, de abrir os espaços da sexualidade às relações interpessoais do eu-tu, que leva naturalmente ao nós plural da reprodução, à descoberta de um espaço do eros com sua beleza própria. Uma atitude de medo e de repressão não sabe ver a diferença entre o erotismo instigante e a pornografia destrutiva.
Aliás, essa repressão pode ser fonte de inibições e, pior ainda, explodir em perversões. A violência e o abuso sexual, no interior das mesmas famílias e das comunidades sociais e religiosas, são o sinal de uma relação doentia em relação a essa temática. A pedofilia na Igreja, que explodiu como um escândalo pelo mundo afora, é apenas uma parte de um problema ainda maior.
A sexualidade é um tema que a Igreja dos clérigos, com o celibato obrigatório e imposto, tem tratado muitas vezes com desconforto e rigidez. Peter Steinfels, aliás, analisando os casos de pedofilia entre os sacerdotes, os vê como bem mais complexos, tendo a ver, em parte, com um mau tratamento do tema da homossexualidade(14). E esta é uma área mal trabalhada, no relativo às diferentes opções sexuais e à situação dos homossexuais e das lésbicas na sociedade e nas religiões, enquanto grupos humanos discriminados. Isso deveria levar a uma maior humildade e cuidado no trato de problemas sérios que exigiriam uma enorme dose de prudência, delicadeza e muita compaixão.
Voltando aos grandes temas do mundo de hoje, ao lado dos enormes avanços da técnica e da ciência, temos o crescimento da violência e da destruição. O século XX viu duas grandes conflagrações e sempre esteve sacudido por conflitos regionais e locais. Entramos nesse clima no novo milênio, com o 11 de setembro, a invasão do Afeganistão e do Iraque, com a destruição recíproca de judeus e de palestinos e com atentados suicidas. Os fundamentalismos levantam a bandeira da guerra santa e setores conservadores do ocidente falam de um eixo do mal. Nesse sentido, foi um sinal profético e firme a notável posição de João Paulo II, condenando guerras e violências, defendendo os direitos humanos das vítimas e denunciando o uso blasfemo do nome de Deus para justificar a violência.
A Igreja do segundo milênio, no ocidente, com a reforma gregoriana do século XI, tornou-se basicamente uma instituição dos clérigos, que concentraram neles o poder. É interessante notar que dois livros críticos sobre a Igreja nos Estados Unidos se referem ao tema do poder dos leigos na Igreja. Para Peter Steinfels, há que desenvolver sempre mais a liderança leiga(15).O tema é tratado com mais desenvolvimento e com propostas concretas em outro livro de 2003, de David Gibson, com expressivo sub-título: “Como os fiéis estão moldando o novo catolicismo americano”. Citando outro autor, Scott Appleby, propõe passar da trilogia pagar-rezar-obedecer (pay, pray, and obey), para permanecer-rezar-pressionar (stay, pray and inveigh). Vê uma presença leiga crescente na vida litúrgica a partir do Vaticano II. Procura entender o êxodo (“porque estão partindo” ), para descobrir mais adiante o mistério da identidade católica que leva tantos a permanecer. E constata uma revolução do povo de Deus a partir da base (cap. 6, “Revolution from below. ‘We, the people of God’”). “Uma reforma de governabilidade (governance) deveria centrar-se no laicato e recuperar sua confiança – o fator crítico para resolver a crise – envolvendo-o mais fortemente na administração da Igreja”(16).
Há também o grande tema dos ministérios. Desde as primeiras comunidades cristãs, foram surgindo diferentes serviços -diaconias- numa distribuição de tarefas. O episcopado e o presbiterado eram apenas duas delas, anda que as mais importantes. Mas nos últimos tempos se insistiu na distinção entre ministérios ordenados e não ordenados, com demasiada subordinação destes àqueles. As chamadas ordens menores eram apenas etapas para as ordens maiores. A redescoberta de um diaconado autônomo e específico de homens casados, abriu, entretanto, novos caminhos. Haveria que redescobrir a multiplicidade dos ministérios, superando sua polarização. Há sempre novas necessidades, que exigem criatividade – e outras atividades a serem inventadas. Estaríamos assim mais perto das comunidades cristãs primitivas, com suas inúmeras diaconias.
Além disso, é importante separar o presbiterado da vida religiosa. Esta última, nas ordens tradicionais, não se reduzia aos clérigos. São Francisco, por exemplo, foi leigo quase toda sua vida, diácono só ao final. As congregações religiosas modernas é que foram sendo constituídas por clérigos. Têm nelas irmãos leigos, mas como uma categoria subordinada. Na verdade, uma comunidade masculina de vida religiosa apenas precisaria de alguns presbíteros para presidir a eucaristia e administrar sacramentos que lhe são reservados.
O celibato é mais próprio da vida religiosa, vida em comum, do que do presbiterado. Foi a igreja ocidental que prescreveu o voto do celibato para os clérigos. Isso não se encontra nas igrejas do oriente. Não há uma razão doutrinal – só disciplinar – para a não ordenação de homens casados. Diante da diminuição de vocações, e das necessidades inadiáveis para a celebração eucarística nas comunidades, há a consciência crescente num número cada vez maior de bispos – ousaria dizer que hoje são uma grande maioria silenciosa – para a revisão dessas normas. Fala-se disso em voz baixa ou por alusões indiretas, em assembléias eclesiásticas. O celibato, enquanto opção livre, pode ter uma dimensão positiva de dom e não apenas de renúncia. Não se trataria de uma fuga, uma sublimação neurótica, mas do descobrimento de um amor que se abre a todos, numa relação de alteridade e não de recuo sobre si mesmo.
Há um anseio crescente para repensar a vida religiosa, respeitados os carismas fundadores. Aliás, as reformas, no mundo beneditino ou no carmelo, foram uma necessidade de atualização e de purificação. As iniciativas de Bernardo ou de Teresa podem voltar em revisões coletivas. Experiências de religiosos e religiosas inseridos na sociedade, abandonando obras tradicionais, sua presença como agentes de pastoral, mostram a vitalidade de um processo renovador.
E isso nos encaminha ao tema das mulheres na Igreja. Elas são maioria nas comunidades e nos serviços, mas continuam subordinadas aos clérigos. Leigas, religiosas, membros de institutos seculares, representam talvez, hoje, o setor mais vital na vida eclesial. A velha tradição patriarcal – de clérigos celibatários – resiste mais do que na sociedade. Mas não poderá opor-se por muito tempo às pressões. Já no Encontro Intereclesial das CEBs de 1992, em Santa Maria, o plenário das mulheres pediu para participar “em todas as instâncias dos ministérios”. Uma decisão de um dicastério romano ainda que com aprovação papal, vedando o acesso ao sacerdócio das mulheres, é apresentado como irreversível. Mas não se revestiu do caráter solene das proclamações dogmáticas. Sem sólida base escriturística e com uma tradição mais cultural que doutrinária, é possivelmente passível de reexame mais adiante.
Um dos anseios maiores é o referente à participação dos fiéis, o povo de Deus. A consciência democrática é um valor universal adquirido e penetra em todas as instituições. Há uma contradição de uma Igreja que prega participação na sociedade e não a aplica na sua vida interna. As CEBs, novo jeitos de ser Igreja, são um laboratório de participação num processo vital de “eclesiogênese”.
Isso leva também à necessária descentralização. No ocidente as dioceses nasceram no mundo medieval e passaram a ligar-se diretamente a Roma. Mas antes disso, nas Igrejas dos primeiros séculos, havia sínodos regionais e estruturas que se mantém nos patriarcados orientais. Em torno a Alexandria ou Antioquia, Lião ou Toledo, igrejas locais vizinhas se articulavam. Com o surgimento, na modernidade, dos Estados-Nações, as estruturas nacionais foram se fortalecendo. O processo de romanização, ao final do século XIX, em reação ao galicanismo francês, quis manter as dioceses ligadas diretamente à Sé de Pedro. Nesse sentido, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil foi pioneira, ainda que haja até hoje resistências a essas estruturas nacionais. O Vaticano II colocou em pauta o tema da colegialidade, a nível nacional, regional e internacional.
Temos de repensar também a relação entre a Fé e a política. A cristandade terminou com a modernidade(17) Não se trata de fazer uma política cristã, mas a Fé ilumina uma opção política tomada a partir de opções pessoais e de uma análise da realidade. Elas têm esferas próprias, mas não estão isoladas uma da outra, se interligando na ação plural e livre dos cristãos(18).
Outro tema central é o do ecumenismo. A relação da Igreja Católica com as Igrejas Evangélicas históricas é mais fluida. Difícil é o contato com muitas Igrejas pentecostais e neopentecostais, algumas bastante reticentes ao ecumenismo. As mesmas Igrejas Ortodoxas, com suas estruturas tradicionais, defendendo suas autonomias e peculiaridades próprias, têm dificuldade em integrar-se em espaços mais amplos. O Conselho Mundial das Igrejas atravessa atualmente um momento crítico. Mas permanece latente entre os cristãos um desejo de unidade.
A ambição é ainda mais ampla do que o ecumenismo do mundo cristão. Na mundialização contemporânea e nos tempos de pluralismos, abre-se o grande espaço do diálogo inter-religioso ou, como dizem alguns, de um macro-ecumenismo. O Papa João Paulo II deu passos significativos e proféticos nos encontros de Assis, ainda que as estruturas curiais tenham feito intervenções restritivas em direção contrária(19).
Há, pois, um mal-estar latente e a exigência crescente de uma revisão coletiva. O bispo francês Gaillot, retirado de sua diocese de Evreux, que criou a diocese virtual de Partênia, expressa o descompasso entre a sociedade atual e a Igreja no título de seu livro: O mundo clama, a Igreja sussurra(20). O teólogo dominicano Christian Duquoc e o historiador Giuseppe Alberigo fizeram análises severas(21).
Da católica e tradicional Espanha partem críticas contundes, com teólogos do nível de González Faus e de Benjamín Forcano(22). O bispo emérito chileno Carlos González, sucessor de Mannuel Larran em Talca, publicou uma revisão corajosa sobre os problemas atuais da Igreja(23). Aliás, vários bispos eméritos têm se manifestado: Cardeal Arns, José Maria Pires, Waldyr Calheiros, Clemente Isnard, Tomás Balduíno ou Pedro Casaldáliga.
No meu livro A utopia surgindo no meio de nós insisti no dinamismo latente da sociedade, tão claramente expresso nos Fóruns Sociais Mundiais. Desse ponto de vista sou otimista. Minha posição é mais mitigada no que se refere à Igreja, ainda que tenha contestado análises pessimistas e apostado na vitalidade das CEBs e das pastorais sociais. Entretanto, não há como negar que os movimentos que mais cresceram nos últimos tempos na Igreja Católica, têm uma espiritualidade intimista e voltada para dentro.
Fala-se de inverno na Igreja. A imagem pode se referir a alguns aspectos institucionais e não levar em conta processos emergentes que vêm das bases. Um leigo italiano, importante na política do pós-guerra, Giuseppe Dossetti, um dia abandonou a vida pública e criou um centro de espiritualidade e de meditação. Anos mais tarde, diante de um cenário nacional preocupante, com partidos em dissolução e corrupção espalhada, sentiu-se na obrigação de voltar a falar. Considerando que a Itália estava num momento sombrio de vida cidadã, inspirou-se num texto do profeta Isaías, quando este se dirigiu a um soldado que vigiava nos muros de sua cidade: “Sentinela, o que resta da noite?” A sentinela respondeu: “Ainda é noite, mas a manhã vem chegando” (Isaias 21, 11-12). Do fundo da escuridão se poderia descobrir um clarão tênue de luz e de calor que chega. Podemos aplicar o caso à Igreja, ainda que num nível bem menos grave. Há que saber pressentir a novidade e o amanhecer que se anunciam adiante, a partir de práticas criativas. D. Hélder gostava de referir-se, na Igreja e na sociedade, às “minorias abraâmicas” fecundas e transformadoras(24).
O teólogo convertido J. H. Newman, mais adiante cardeal, em célebre artigo de 1859, tratou de um momento especialmente difícil na vida da Igreja, logo depois do Concílio de Nicéia, no século IV, quando uma parte do episcopado aderira à heresia ariana e o próprio papa Libério estava indeciso. Para ele, quem manteve a Fé não foram basicamente nem Roma nem os bispos divididos, mas o “consensus fidelium”, o espírito religioso dos fiéis. O Pe. Congar, analisando o fato e apoiando-se no Pe. Lebreton, não separa fiéis e hierarquia, mas a Fé do povo e a especulação de alguns teólogos. Jean Guitton, com Newman, valorizou a ação dos leigos nesse episódio tormentoso e partiu daí para ver sua relevância na vida da Igreja de nossos dias(25).
A situação, hoje, não está nesses limites extremos; mas, coloca para os fiéis, povo de Deus, desafios bastante significativos. É claro, diante da necessidade de mudanças, há a espessura e a opacidade das resistências e alguns temas estão aparentemente congelados. Há que guardar acesa a Esperança. Sempre na história apareceram carismas refundadores que remoçaram a Igreja e, sobretudo, contamos com a presença do Espírito Santo. Quando menos se espera, surge a surpresa de outra “flor de inesperada primavera”, na bela expressão de João XXIII sobre o Vaticano II. Um novo concílio mais adiante, quem sabe…(26).
NOTAS:
(1) “Secularização em questão e potencialidade transformadora do sagrado” in L. A. Gómez de Souza, A utopia surgindo no meio de nós. Rio de Janeiro, Mauad, 2003, pp. 91-108.
(2) Pietro Prini, Lo scisma sommerso. Il messagio cristiano, la società moderna e la chiesa católica. Garzanti, 1999, p. 9.
(3) Peter Steinfels, A people adrift. The crisis of the Roman Catholic Church in America. N.Y., Simon & Schuster, 2003, p. 258. O título é severo: Um povo à deriva.
(4) Prini, op. cit., pp. 85-90
(5) Mounier, “Manifeste au service du personnalisme”, Oeuvres, vol I, Paris, Seuil, 1961 pp. 481-649. Roberto Bartholo Jr. Você e eu. Martin Buber. Presença palavra, Rio de Janeiro, Garamond, 2001.
(6) Henrique de Lima Vaz, “Consciência cristã e responsabilidade histórica”, in Herbert José de Souza e L. A. Gomez de Souza (eds.), Cristianismo hoje. Rio de Janeiro, Ed. Universitária da UNE, 1962.
(7) Mounier, “Refaire la renaissance”, Oeuvres, , vol I., op. cit., pp. 137-174. “Mounier et sa génération. Correspondance”, Oeuvres, vol. IV, Paris, Seuil, 1963, carta de 1941, p.477.
(8) L. A. Gomez de Souza, A utopia surgindo no meio de nós, Rio de Janeiro, Mauad, 2003, pp.40, 76.
(9) Termo muito caro a Alceu Amoroso Lima que, nos anos 30, publicou dois livros com essa idéia no título. Com uma ponta de exagero ou de ironia, talvez possamos ver aí uma tradução antecipada da new age.
(10) Theodore Roszak, Person-planet. The creative disintegration of industrial society. Londres, Granada Publishing, 1981.
(11) L.A. Gomez de Souza (org.), Desafios do século XXI.. Biociência, reprodução e sexualidade, fundamentalismos e ética, Rio de Janeiro, Educam, 2008.
(12) Lucia Ribeiro, Sexualidade e reprodução. O que os padres dizem e o que deixam de dizer. Petrópolis, Vozes, 2001, pp. 55-87.
(13) P. Prini, Lo scisma sommerso, op. cit. pp. 75-84.
(14) Peter Steinfels, A people adrift, op. cit., p. 275.
(15) Peter Steinfels, A people adrift, op. cit. p. 358.
(16) David Gibson, The coming Catholic Church. How the faithful are shaping a new American Catholicism.. San Francisco, Harper, 2003, pp. 35, 53, 63, 82, 109, 343 e 344.
(17) Mounier, “Feu la chrétienté”, Oeuvres, vol. III, Paris, Seuil, 1962, pp. 531-713.
(18) L.A. Gomez de Souza, Uma fé exigente, uma política realista. Rio de Janeiro, Educam, 2008.
(19) No Brasil, o teólogo leigo Faustino Teixeira tem trabalhado bastante o tema. Ver dois livros organizados por ele, Diálogo de pássaros: nos caminhos do diálogo inter-religioso. São Paulo, Paulinas, 1993; O diálogo inter-religioso como afirmação da vida.. São Paulo, Paulinas, 1997. Do mesmo autor, “Diálogo inter-religioso: desafio da acolhida e da diferença”, Perspectiva Teológica, nº 34, 2002, pp. 155-177, “O diálogo inter-religioso no tempo da cidadania da identidade, Tempo e Presença, nº 332, novembro – dezembro 2003.
(20) Jacques Gaillot, Le monde crie, l’Église murmure. Paris, Sylos Alternatives, 1991. Id., Église virtuelle, Église de l’an 2000. Un evêque au royaume d’internet. Paris, Albin Michel, 1999.
(21) Christian Duquoc, Credo la chiesa: precarietà istitutionale e regno de Dio, ed. Queriniana, 2001. Giuseppe Alberigo, “Del palo a la misericordia: el magisterio en el catolicismo contemporáneo”, Selecciones de Teología, vol. XXIII, fasc. 87, 1983, pp. 201-216.
(22) J.J. González Faus, “El meollo de la involución eclesial”, Fé y Razón, Madri, octubre de 1989. Benjamín Forcano tem uma ampla e contundente produção. Ver sua obra, El evangelio como horizonte, em três volumes: 1. Del legalismo a la libertad. 2. Disidencia evangélica. 3. Subvertir la historia. Madri, Nueva Utopía, 1999.
(23) O bispo Carlos González C., La mirada atenta y el paso ligero. Santiago, Cesoc – ed. Chile – América, 2003.
(24) L. A. Gómez de Souza, “Isaías e D. Helder, alegria e esperança”, in Maria Clara Bingemer e Eliana Yunes (org.), Profetas e Profecias, São Paulo, Loyola, 2002.
(25) Artigo de Newman na revista The Rambler, de julho de 1859. Ver J. H. Newman, Pensées sur l’ Église, Paris, Cerf, 1956, pp. 404-439. Yves Congar , Jalons pour une théologie du laïcat, Paris, Cerf, 1954, p. 395. Jean Guitton, L’Église et les laïcs, Paris, DDB, 1963.
(26) L. A. Gómez de Souza, Do Vaticano II a um novo concílio? O olhar de um cristão leigo sobre a Igreja. São Paulo, Loyola – Ed. Rede da Paz, 2004.
(1) “Secularização em questão e potencialidade transformadora do sagrado” in L. A. Gómez de Souza, A utopia surgindo no meio de nós. Rio de Janeiro, Mauad, 2003, pp. 91-108.
(2) Pietro Prini, Lo scisma sommerso. Il messagio cristiano, la società moderna e la chiesa católica. Garzanti, 1999, p. 9.
(3) Peter Steinfels, A people adrift. The crisis of the Roman Catholic Church in America. N.Y., Simon & Schuster, 2003, p. 258. O título é severo: Um povo à deriva.
(4) Prini, op. cit., pp. 85-90
(5) Mounier, “Manifeste au service du personnalisme”, Oeuvres, vol I, Paris, Seuil, 1961 pp. 481-649. Roberto Bartholo Jr. Você e eu. Martin Buber. Presença palavra, Rio de Janeiro, Garamond, 2001.
(6) Henrique de Lima Vaz, “Consciência cristã e responsabilidade histórica”, in Herbert José de Souza e L. A. Gomez de Souza (eds.), Cristianismo hoje. Rio de Janeiro, Ed. Universitária da UNE, 1962.
(7) Mounier, “Refaire la renaissance”, Oeuvres, , vol I., op. cit., pp. 137-174. “Mounier et sa génération. Correspondance”, Oeuvres, vol. IV, Paris, Seuil, 1963, carta de 1941, p.477.
(8) L. A. Gomez de Souza, A utopia surgindo no meio de nós, Rio de Janeiro, Mauad, 2003, pp.40, 76.
(9) Termo muito caro a Alceu Amoroso Lima que, nos anos 30, publicou dois livros com essa idéia no título. Com uma ponta de exagero ou de ironia, talvez possamos ver aí uma tradução antecipada da new age.
(10) Theodore Roszak, Person-planet. The creative disintegration of industrial society. Londres, Granada Publishing, 1981.
(11) L.A. Gomez de Souza (org.), Desafios do século XXI.. Biociência, reprodução e sexualidade, fundamentalismos e ética, Rio de Janeiro, Educam, 2008.
(12) Lucia Ribeiro, Sexualidade e reprodução. O que os padres dizem e o que deixam de dizer. Petrópolis, Vozes, 2001, pp. 55-87.
(13) P. Prini, Lo scisma sommerso, op. cit. pp. 75-84.
(14) Peter Steinfels, A people adrift, op. cit., p. 275.
(15) Peter Steinfels, A people adrift, op. cit. p. 358.
(16) David Gibson, The coming Catholic Church. How the faithful are shaping a new American Catholicism.. San Francisco, Harper, 2003, pp. 35, 53, 63, 82, 109, 343 e 344.
(17) Mounier, “Feu la chrétienté”, Oeuvres, vol. III, Paris, Seuil, 1962, pp. 531-713.
(18) L.A. Gomez de Souza, Uma fé exigente, uma política realista. Rio de Janeiro, Educam, 2008.
(19) No Brasil, o teólogo leigo Faustino Teixeira tem trabalhado bastante o tema. Ver dois livros organizados por ele, Diálogo de pássaros: nos caminhos do diálogo inter-religioso. São Paulo, Paulinas, 1993; O diálogo inter-religioso como afirmação da vida.. São Paulo, Paulinas, 1997. Do mesmo autor, “Diálogo inter-religioso: desafio da acolhida e da diferença”, Perspectiva Teológica, nº 34, 2002, pp. 155-177, “O diálogo inter-religioso no tempo da cidadania da identidade, Tempo e Presença, nº 332, novembro – dezembro 2003.
(20) Jacques Gaillot, Le monde crie, l’Église murmure. Paris, Sylos Alternatives, 1991. Id., Église virtuelle, Église de l’an 2000. Un evêque au royaume d’internet. Paris, Albin Michel, 1999.
(21) Christian Duquoc, Credo la chiesa: precarietà istitutionale e regno de Dio, ed. Queriniana, 2001. Giuseppe Alberigo, “Del palo a la misericordia: el magisterio en el catolicismo contemporáneo”, Selecciones de Teología, vol. XXIII, fasc. 87, 1983, pp. 201-216.
(22) J.J. González Faus, “El meollo de la involución eclesial”, Fé y Razón, Madri, octubre de 1989. Benjamín Forcano tem uma ampla e contundente produção. Ver sua obra, El evangelio como horizonte, em três volumes: 1. Del legalismo a la libertad. 2. Disidencia evangélica. 3. Subvertir la historia. Madri, Nueva Utopía, 1999.
(23) O bispo Carlos González C., La mirada atenta y el paso ligero. Santiago, Cesoc – ed. Chile – América, 2003.
(24) L. A. Gómez de Souza, “Isaías e D. Helder, alegria e esperança”, in Maria Clara Bingemer e Eliana Yunes (org.), Profetas e Profecias, São Paulo, Loyola, 2002.
(25) Artigo de Newman na revista The Rambler, de julho de 1859. Ver J. H. Newman, Pensées sur l’ Église, Paris, Cerf, 1956, pp. 404-439. Yves Congar , Jalons pour une théologie du laïcat, Paris, Cerf, 1954, p. 395. Jean Guitton, L’Église et les laïcs, Paris, DDB, 1963.
(26) L. A. Gómez de Souza, Do Vaticano II a um novo concílio? O olhar de um cristão leigo sobre a Igreja. São Paulo, Loyola – Ed. Rede da Paz, 2004.
(*)Doutor em sociologia pela Universidade de Paris. Militou na JEC desde 1950 e depois na JUC, onde foi membro da equipe nacional; Secretário Geral da JEC Internacional. Assessorou D. Helder Camara na preparação do Concílio. Foi funcionário das Nações Unidas (CEPAL, Chile e México, FAO, Roma) e professor em Universidades do Rio de Janeiro. Assessor de movimentos sociais e pastorais.
Fonte: Instituto Humanitas UNISINOS, 21-04-2010
Fonte: Instituto Humanitas UNISINOS, 21-04-2010