SOBRE O MITO ARIANO


Neste mês de janeiro, cairá em domínio público o livro Minha Luta (Mein Kampf), escrito por Adolf Hitler na fortaleza de Landsberg, após ter sido condenado pelo Tribunal de Munique pela tentativa de golpe em 1923. No Brasil, a Geração Editorial lançará uma tiragem no primeiro semestre de 2016, com amplas notas de rodapé, muito embora a Editora Centauro já tenha lançada uma edição em 2001, numa tradução direta do original alemão feita por Klaus Von Puschen, esclarecendo a editora que “em absoluto, não apoia nem respalda, por nenhum meio ou forma, a ideologia ou os conceitos doutrinários de seu autor, declarando expressamente a neutralidade de seu posicionamento como editora, de apenas disponibilizar seu conteúdo, o qual, embora polêmico – e em alguns casos, odiado – simboliza um marco histórico – infelizmente trágico – da história da humanidade”.

Concordo integralmente com a opinião do editorialista Nélson Jahr Garcia: “A comunidade judaica, pelo menos alguns de seus setores, batalham por proibir a divulgação do livro. Não entendo. Quanto mais se conhecer, maior se tornará o repúdio e aversão. … Penso que “Minha Luta” deva ser amplamente conhecido, um texto preconceituoso, presunçoso e que traz embutidas neuroses e psicoses indiscutíveis. Conhecê-lo talvez seja a melhor forma de impedir que aquelas ideias ressuscitem. Além disso sou contra qualquer forma de censura. Os romanos incendiaram a Biblioteca da Babilônia, Hitler e Stalin queimaram livros, Getúlio Vargas também, os militares de nossa recente ditadura inclusive, e outros tantos, a humanidade só perdeu. … Devemos ler, analisar, discutir e produzir vacinas. Como os vírus, as ideias absurdas tendem a retornar fortalecidas e resistentes; só conhecendo poderemos enfrentá-las.”

A história de Mein Kampf – sua preparação, os comentários que acompanharam a publicação, seu impacto no florescimento do nazismo e no III Reich, sua recepção, sua difusão internacional e seu itinerário depois da guerra -, ainda pouco conhecida por milhões de brasileiros, pode ser entendida através de um livro do jornalista Antoine Vitkine, denominado Mein Kampf: a história do livro, Nova Fronteira, 2010, 228 p. No Epílogo, Vitkine descreve as sete lições de Mein Kampf: 1. O destino do livro requer que se dê atenção aos projetos políticos fanáticos e violentos, sem nunca subestimá-los; 2. A lembrança de Mein Kampf e da maneira como este livro foi tragicamente subestimado em outros tempos é apenas um guia incerto para nossa época. O erro contemporâneo consistiu em ignorar uma advertência explícita, bem como na incapacidade de entender a novidade encarnada pelo nazismo; 3. As ausências de reação frente a Mein Kumpf tem menos a ver com o desconhecimento do texto que com uma falta de real vontade política; 4. A barbárie pode conviver facilmente com a democracia mais desenvolvida e esta por sua vez de modo algum se preserva da selvageria. O nazismo se aninhou nas falhas da democracia; 5. Mein Kumpf representa o traço de união entre Auschwitz e o antissemitismo europeu; 6. Mein Kumpf exemplifica a negação da sociedade democrática, das liberdades fundamentais, do Iluminismo, do progressismo, da mestiçagem, da igualdade entre os indivíduos. O mundo livre foi a primeira vítima das ideias názis. Mein Kumpf diz respeito a todos nós; 7. De nada serve proibir Mein Kumpf; é inútil mantê-lo à distância ou escondê-lo no fundo do inconsciente coletivo, ainda que isso fosse possível. Mein Kumpf está entre nós, e por muito tempo ainda.

Algumas publicações merecem ser lidas pelos cidadanizados do Brasil, país que atravessa uma fase democrática delicada, às vésperas de futuros imprevisíveis, inclusive com manifestações antissemíticas, algumas disfarçadas, outras declaradamente acintosas, seduzindo débeis, que anseiam pelo retorno das botas militares aos comandos nacionais.

Para se conhecer, sem histerismos prós e contras, a sintomatologia do antissemitismo, que permanece ativo através da adoção de diversas máscaras, ofereço ao leitor quatro referências balizadoras. A primeira delas é da autoria do historiador especializado na origem das crenças contemporâneas: História Geral do Anti-Semitismo, Gerald Messadié, RJ, Bertrand Brasil, 2010, 420 p. Um texto de fácil acesso e inúmeras referências sobre os regimes tirânicos que implantaram nacionalismos dogmáticos. O autor, um não-judeu perplexo diante das atrocidades infligidas aos judeus durante mais de dois milênios, examina incontáveis obras sobre o tema, abordadas sobre as vertentes psicanalítica, econômica, sócio-religiosa, capitalista e socialista. Visceralmente convencido de que o antissemitismo atrelado se encontra à história do mundo ocidental. Uma leitura fascinante para quem deseja ampliar sua enxergância crítica.

Para quem busca obter informações históricas do antissemitismo desde a Antiguidade até nossos dias, passando pelos assassinatos em massa praticados no Holocausto nazista, o livro História do Anti-semitismo, Trond Berg Eriksen, Häkon Harket e Einhart Lorenz, Lisboa, edições70, 2010, 694p. Analisa os motivos e ressaltam os muitos surtos da patologia social nos diversos contextos históricos, alguns cíclicos, outros sob as mais diferenciadas formas conspirativas e acusatórias. Um texto que faz compreender “de que forma preconceitos, discriminações, perseguições e ódio contra culturas e religiões desconhecidas podem ter consequências catastróficas para seres humanos inocentes”.

A terceira indicação vem de uma obra coletiva, coordenada pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da FFLCH-USP, dirigente do LEER – Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação. Trata-se de O Anti-semitismo nas Américas: Memória e História, SP, EDUSP, 2007, 744 p. O trabalho coletivo se divide em três grandes partes: Anti-semitismo Tradicional, Anti-semitismo Moderno e Estudos Comparativos. As análises se concentrando a partir da segunda metade do século XIX, época em que teorias racistas foram endossadas por intelectuais americanos. Na área Brasil, destaques sejam dados a alguns textos: As Elites Católicas do Brasil e sua Atitude em Relação aos Judeus (1933-1939), de Graciela Ben-Dror; O Discurso Anti-semita na Obra de Gilberto Freyre, de Sílvia Cortez Silva; Os Discípulos de Barroso, de Ivair Augusto Ribeiro.

Para quem não sabe, Sílvia Cortez Silva, acima citada, é professora pernambucana, da UFPE, PhD em História pela FFLCH-USP, onde defendeu a tese Tempos de Casa Grande (1930-1940). Segundo ela, “constatou-se que Pernambuco, assim como outros tantos Estados brasileiros, não ficou imune à onda de anti-semitismo que envolveu o Brasil nos anos de 1930. Muito pelo contrário, estava integrado ao eixo Rio de Janeiro – São Paulo, usando tribuna persuasiva e eficaz: revista, jornal e livros”.

Por fim, o livro O Mito Ariano, Léon Poliakov, SP, Editora da USP, 1974, 330 p., é leitura despertadora por derradeiro. Efetuando alentada pesquisa das raízes remotas do mito ariano, ele procura estabelecer relações entre elas e um passado próximo, o do III Reich, quando, na Europa, foi estabelecida a diferenciação entre arianos e semitas. Os primeiros autorizados a viver, os segundos condenados à morte. E o gênero humano, ansioso por uma paz universal entre todas as etnias, sempre de olhos atentos para as demonstrações de fraternidade universal efetivadas por um jesuíta latino-americano tornado papa sob o nome Francisco.

(Publicado em 04.01.2016, no site do Jornal da Besta Fubana – www.luizberto.com/sempreamatutar)
Fernando Antônio Gonçalves