SOBRE JOÃO SILVINO DA CONCEIÇÃO


Para satisfazer a curiosidade de muitos, inclusive ex-colegas de universidade, torno pública mais uma vez a identificação do João Silvino da Conceição, este amigão de muitas décadas, companheiro inseparável de danações, reflexões, gozações e coisas que tais, cuja alma é irmã gêmea da minha. O JSC é nascido no interior do Rio Grande do Norte, em Currais Novos. Semialfabetizado, três casamentos, oito filhos, seis vivos e dois anjinhos, o Silvino demonstra ser possuidor de uma energia incomum, uma vontade férrea de ser cada vez mais nordestinamente brasileiro. Suas histórias, não raro, são reproduzidas em ambiente onde prepondera o diálogo consciente, com muita frequência regado a uma imensa rodada de “refrigerantes” pra lá de glaciais. As garrafas sempre acompanhadas de tacos de queijo de coalho na brasa e farofa de jerimum com carne de sol, num protocolo de deixar um gosto de quero-mais da gota serena em qualquer mortal pecador como a gente.

Tricolor quatro costados, João é pernambucaníssimo quando alguém daqui joga com uma equipe de fora. Em dia de domingo, sempre perambula pelos estádios de futebol, acompanhado da Dona Conceição, sua companheira de um bocado de tempo, sete arrobas bem distribuídas e com pouca elasticidade mamária, sessentona experiente, mente livre e língua sempre solta, nenhuma flacidez abdominal, muitos quilômetros bem rodados, serenidade espiritual lindona, sem as louracidades das pessoas artificiais que só raciocinam por onde não deveriam, sempre da cintura para baixo.

As amizades do Silvino são de uma fidelidade canina: Fininha, 120 quilos, tia da sua mãe, mexeriqueira de primeira grandeza, ouvidos e boca maiores que o bom-senso; Zefinha, arrumadeira de bom calibre, criada junto com o Silvino, tendo incentivado ele nas primeiras manobras homem-mulher, na garagem sem-carro que ficava no fundo do terreno residencial; Faguinho Silva, primo em grau bem distante, especialista em corar frade de pedra com historietas apimentadas, dado seu furor anti-puritanismo; Jean Louis, inteligência gerencial gota serena em corpo atlético ainda nos conformes, marido da Leninha, uma prestimosidade cristã pra correntista bancário algum botar defeito; Dodora, toda cheínha, zelosa especialista em educação de jovens e adultos, filha da Zima, uma sessentona que é virada num molho de coentro, dançarina, junina, carnavalesca, riso largo, sempre mandando à merda as fuxicarias do derredor; e Zulmirinha, morenona de cabelo bem espichado, irmã da Dona Conceição, mulher do Silvino, seios ainda em posição de sentido, apesar dos quatro sugadores nascidos, hoje duas parelhas de nordestinos de fazer gosto às mais oferecidas. Nunca esquecendo o Faustino boa-praça, olhos sempre antenados, vocação kardecista sem mesuras nem fricotagens. Nem a Sandrinha, com seus olhinhos fingidamente japoneses.

Com o João Silvino, usufruo um bate-papo semanal fraternal, nos quais as suas irritações travestidas de quase hercúlea resistência aos medíocres foram sendo gradativamente desativadas, substituídas, bem devagarzinho, por uma crescente confiança nos amanhãs de todos nós, hoje solidificada numa consistente convivialidade, enxotados para longe os aperreios do cotidiano e as cavilações puritanosas dos sósias e sócios do divino.

Uma conquista memorável, o consentimento do João Silvino da Conceição para acesso a um monte de cadernos de papel pautado de sua propriedade. As suas primeiras anotações datam de setembro de 1955, às vésperas das eleições presidenciais, quando ele ainda se deliciava na sua primeira lua-de-mel, nas Termas Salgadinho, uma temporada presenteada por um amigo de seu pai, agricultor de médio porte. As últimas notas são deste ano, os erros ortográficos e os de concordância, hoje, bem mais atenuados pelo exercício de um escrever quase diário.

Sistematizei alguns cadernos do João sem perda alguma do conteúdo. A intenção foi apenas, com uma certa disciplina arrumadeira, a de proporcionar aos amigos dele alguns instantes para um pensar recheado de muita nordestinidade, mesclando assuntos os mais diferenciados, numa conjuntura em que o sentimento regionalista não pode ficar relegado a planos secundários, nem a fúrias globalizantes.

De muita franqueza, sem os mas-mas dos fingidos bundas moles de olhinhos virados repletos de “ai-Jesus”, Silvino botou o dedo na ferida, recentemente: “Não adianta correr atrás dos pixotes que vendem papelotes estupefacientes disso ou daquilo. Vamos rasgar a fantasia da hipocrisia: em muitos lugares granfinos, é hoje chiquérrimo servir, em bandejas aquecidas, os pozinhos e os canudinhos indispensáveis para deixar animadão o ambiente, todo mundo ficando numa boa, alegre e serelepe, à merda a moral, os bons costumes, o fino trato e os gestos nobilitantes”. Por causa de dissabores familiares, teve até grandão metido a religioso que ficou com “cara de pum”, como dizia a Trude, prima muito amada, sobrinha querida dos meus eternizados pais.

Para os que se postam como “nunca-errados”, o Silvino tem opinião de bate-pronto: “Não sei respeitar as pessoas que não sabem reconhecer seus erros. São covardes, porta-estandartes de uma frouxidão que não é nordestina nem brasileira. Aliás, nem é digna da raça humana”.

Helderista de carteirinha, o Silvino não tolera ver os “imitadores” do eternizado Dom, aqueles que buscam aparentar ser, jamais efetivamente sendo. E cita sempre o saudoso arcebispo, para consolidar sua opinião sobre os que não são: “É urgente evitar que os jovens se convençam de que a Igreja é mestra em preparar grandes textos e sonoras conclusões, sem a coragem de levá-las à prática”.

Intencionalmente, as anotações coligidas nos cadernos do João não obedecem a qualquer ordem cronológica. Mesclando apontamentos de épocas diferenciadas, procura-se, através de procedimentos integralmente não-científicos, manter a atenção dos seus escritos, evitando enfados desnecessários e abandonos precipitados.

A lição maior do João Silvino da Conceição, contudo, é para todos, pernambucanos e pernambucanizados que nem ele: que nós, imbuídos do mais acentuado instinto de soberania nacional, saibamos fazer a hora pernambucana, transformando propostas formuladas em ações concretas, percebendo que a História se edifica através de amplos procedimentos participativos, que exigem compromissos, desafios estruturadores e conscientizações comunitárias, a ninguém se permitindo o distanciamento das suas indispensáveis funções de sujeito.

(Publicado em 16.07.2018 no site do Jornal da Besta Fubana (www.luizberto.com) e em nosso site www.fernandogoncalves.pro.br)
Fernando Antônio Gonçalves