SOBRE FUNDAMENTALISMOS


Vez em quando me deparo com pessoas de classe média, ou situadas acima, que se incomodam bastante por não entender bem o que seja fundamentalismo, um dos termos mais utilizados no mundo midiático contemporâneo.

Recomendo um livro bastante esclarecedor do teólogo Leonardo Boff: Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz: desafio para o século XXI, RJ, Vozes, 2009, 102 p. Nele, são analisados o fundamentalismo protestante, o católico, o islâmico e o da globalização. Vejamos um pouco sobre cada um deles, segundo Boff, uma referência nacional sobre temas como ética, ecologia e espiritualidade, autor de mais de 70 livros, inclusive Ecologia, grito da terra, grito dos pobres, prêmio Sérgio Buarque de Holanda, conferido pela Biblioteca Nacional como o melhor ensaio social do ano 1994, tendo sido o livro considerado, em 1997, nos EUA, como um dos três livros daquele ano que mais favorecia o diálogo entre ciência e religião:

O fundamentalismo protestante aconteceu inicialmente nos interiores da Universidade de Princeton, USA, onde as palavras da Bíblia eram tomadas ao pé da letra. Segundo ele, como Deus não pode errar e é imutável, sua Palavra e suas sentenças valem para todo o sempre. Entre 1890 e 1915, uma coleção de 12 fascículos teológicos formaram a série Fundamentals: a testimony of truth, apresentando um cristianismo extremamente rigoroso, ortodoxo e dogmático, combatendo o liberalismo que proclamava a liberdade de opinião, impondo um criacionismo estrito, divulgando que só Jesus é o caminho da salvação. O fundamentalismo protestante ganhou relevância nos EEUU a partir das igrejas eletrônicas. Que combatem todo tipo de ecumenismo, visto como invenção de Satanás. Ressalte-se, por dever ético, que nem todo protestante conservador é fundamentalista.

O fundamentalismo católico apoia-se na certeza de ser o único portador da verdade absoluta, sentindo-se os papas como representantes de Deus e, por via de consequência, senhores do mundo. Os exemplos dos papas Alexandre VI (1492-1503) e Nicolau V (1447-1455) podem ser caracterizados como se houvesse “somente um Deus, um papa, um rei, uma cultura e uma ordem mundial querida por Deus”. Ainda hoje, dentro do catolicismo, sobrevivem setores fundamentalistas disfarçados sutilmente sob a forma de restauração e integrismo, onde o principal inimiga a ser combatido é a Modernidade, “com suas liberdades, sua independência face ao poder religioso e seu processo de secularização”. O fundamentalismo doutrinal católico pode ser representado pela encíclica Mirari vos (1832), de Gregório XVI, que considera a liberdade de opinião como um “erro pestilentíssimo”, bem como o Sílabo de Pio IX (1864), também condenando todas as liberdades modernas. Mais recentemente, em 2000, o documento Dominus Jesus, assinado pelo então Cardela Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, antiga Inquisição, traz sinais fundamentalistas, posto que o documento afirma que as demais denominações cristãs não são Igreja, possuindo apenas alguns elementos eclesiais, sendo imperfeitas. O pentecostalismo católico, carregado de emocionalismos, não são sensíveis às questões de justiça, dos pobres, dos sem-teto, distanciando-se da Teologia da Libertação e das demais pastorais sociais.

O fundamentalismo islâmico é o que mais ganhou notoriedade nos últimos tempos. O islamismo foi a última grande religião a surgir no século VII, estendendo-se do Marrocos até a Indonésia, incluindo-se a Turquia, parte da África Negra, da Rússia e da China. Segundo Boff, “é a religião que mais cresce no mundo e tem hoje cerca de 1,2 bilhão de adeptos”. Trata-se de uma religião extremamente simples, sustentada por cinco pilastras: a oração virtual, cinco vezes ao dia, feita na direção de Meca; peregrinação a Meca, uma vez na vida; jejuar do nascer ao pôr do sol durante o Ramadã, o nono mês lunar; dar esmolas como forma de partilha e de agradecimento a Deus, doador de todos os bens; e professar que Alá é o único Deus e Maomé o seu Profeta. Se os cristãos professam que Deus se fez homem, os mulçumanos afirmam que Deus se fez livro. O Alcorão se divide em 114 capítulos (suras), distribuídos em duas grandes partes, correspondentes às atuações do Profeta: em Meca (610-622) e em Medina (622-632). A primeira parte traz textos mais curtos, fundamentalmente a doutrina, revelando um grande respeito pelos profetas, por Jesus e por Maria. A segunda parte trata de orientações concretas acerca do viver corretamente, incluindo organização política e sistema jurídico. Após a morte do Profeta, duas tradições se contrapuseram: os xiitas e os sunitas. A grande maioria, cerca de 90% dos muçulmanos, na Indonésia, no Paquistão e no Iraque, são sunitas. Atualmente, com a demonização recíproca dos lados, “os ocidentais tendem a ver nos muçulmanos as figuras do fanático religioso e do terrorista. Os muçulmanos tendem a ver nos ocidentais os ateus práticos, os materialistas crassos e os secularistas ímpios”.

Entretanto, Boff acrescenta ao seu livro alguns capítulos por deveras interessantes: 5. O fundamentalismo da globalização; 6. O fundamentalismo neoliberal e científico-técnico; 8. Choque ou diálogo de civilizações?; 11. Como conviver com o fundamentalismo?; 14. Terrorismo: a guerra dos fundamentalistas; 16. A construção continuada da paz; 18. Resgatar a dimensão do coração; 19. Que provável futuro nos espera?

Com uma conclusão denominada O próximo passo: capital espiritual, Leonardo Boff reforça um sonho dos cidadanizados do mundo: ultrapassar o capital material, favorecendo a supremacia do capital espiritual, posto que o primeiro se exaure e tem limites, enquanto o segundo é infinito e inexaurível, não possuindo limites o amor, a compaixão, o cuidado, a criatividade, valores que deveriam perfazer o capital espiritual de toda sociedade mundial. E ele conclui seu livro reproduzindo o pensar de uma mulher notável, Rose Marie Muraro: “Quando desistirmos de ser deuses, poderemos ser plenamente humanos, o que ainda não sabemos o que é, mas que já tínhamos intuído desde sempre”.

PS. Nossa integral solidariedade às vítimas dos atentados praticados por fundamentalistas, sejam eles das mais variadas vertentes religiosas, todas elas a revelarem uma sectarização política intensamente psicótica.

(Divulgado em 18.07.2016, no www.fernandogoncalves.pro.br)
Fernando Antônio Gonçalves