SENTIMENTALISMOS E BRUTALIDADES


Por ocasião do prestigiado lançamento de mais um livro de memórias de amigo querido, o Almeri Bezerra, na Livraria Cultura do Paço Alfândega, deparei-me, numa das estantes de venda, com a quarta capa de um livro que trazia uma definição bastante instigante: “O sentimentalismo é o progenitor, o avô e a parteira da brutalidade”. Num contexto recifense, onde os índices de criminalidade estão alcançando os primeiros lugares das estatísticas nacionais, adquiri o livro Podres de Mimados – As Consequências do Sentimentalismo Tóxico, de Theodore Dalrymple, SP, É Realizações, 2015.

Dalrymple é classificado pelo pensador Luiz Felipe Pondé, que apresenta a edição brasileira como “um crítico cultural urgente”. E o tema do autor, desenvolvido numa prosa irônica, bem humorada e contundente, é inquietante para os tempos recifenses de agora, repletos de religiosidades prenhes de cavilosidades, hipocrisias e falsos moralismos: “Como o culto do sentimentalismo tem destruído nossa capacidade de pensar e até a consciência de que é necessário pensar”. Em outras palavras: “Quais são as consequências sociais e políticas das ações de uma sociedade que se deixa pautar predominantemente pelos sentimentos”. E conclui com ampla pertinência: “O culto tóxico do sentimentalismo acabou por se articular institucionalmente – nos governos, na mídia e nas universidades, tornando-se não um esforço para refletir sobre as angústias modernas, mas uma desculpa permanente de sociedades ricas, a princípio, para o fracasso (afinal, a vida sempre foi ‘doente de dor’) e para a irresponsabilidade contra as dores do amadurecimento e da vida real.” Em consequência, diz ainda Pondé, “a ‘política das vítimas’ acabou por se constituir numa desculpa para a incapacidade de enfrentar a vida adulta.”

E, complementando, para quem passou pela infância acreditando em Papai Noel, perna cabeluda, gato preto, sexta-feira 13, espada de São Jorge e alma sebosa, deve atentar para alguns fatos da história mundial ainda hoje incrustados nas cabeças dos abilolados que se imaginam conhecedores de fatos autênticos desde os tempos dos antigamente. A leitura do livro Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo, do jornalista brasileiro Leandro Narloch, editora Leya, 2013, seguramente deixará adolescentes e adultos melhor capacitados para não resvalar por armadilhas contadas em campos de futebol e mesas de bar, danças em puteiros e outras encenações para demonstrar alta sabedoria.

O livro do Narloch é “um guia contra a doutrinação que muitos brasileiros sofreram na escola: seu alvo são os principais mitos sobre os últimos 2 mil anos que prevalecem nos livros didáticos e nas provas do Enem”. Uma leitura esclarecedora, lúdica por derradeiro, da qual extraímos alguns exemplos mais conhecidos, relacionados com a Idade Média:

a. Que na Idade Média, as mulheres dos cavaleiros usavam cintos de castidade. Tem gente que garante ter visto alguns exemplares de cintos em museus europeus. Esclarece Narloch: “saiba, caro leitor, que todos os cintos de castidade, muitos ainda em exposições, são ‘relíquias medievais’ feitas séculos depois do fim da Idade Média. O Museu Britânico exibiu por 150 anos um cinto de chapa de ferro que todos pensavam ter vindo do século 12”. Somente em 1996 foi retirado da vitrine, comprovando-se que era uma falsificação fabricada no século 19. E ainda revela Narloch que um compêndio escrito por Arnaud de Villeneuve, alquimista e médico da Faculdade de Medicina de Montpellier no século 13, conta um bom exemplo: o caso de mulheres de mercadores italianos que se divertiam com um pênis de madeira enquanto seus maridos estavam fora, ressaltando que não fazia bem ficar tempo demais sem orgasmo.

b. Que noivas eram obrigadas a passar a primeira noite com o senhor feudal. Tudo surgindo de um baita mal-entendido. Segundo Narloch, em muitos feudos, os senhores autorizavam o casamento dos servos com um gesto simbólico, colocando a mão ou a perna na cama dos noivos, chamada de “pernada”.

c. Que a Igreja baniu a ciência na Idade Média. Grossa mentira, diz Narloch. E vai além: “Quem visita a França sabe da existência de uma igreja gótica, a Catedral de Notre-Dame de Chartre, a 90 quilômetros de Paris, onde um detalhe a torna especial. Entre as imagens, há sete esculturas de grandes nomes da filosofia e da ciência clássica, quase todos pagãos: Prisciano, Boécio, Cícero, Euclides, Aristóteles, Ptolomeu e Pitágoras. Provando a proximidade entre ciência e religião.”

d. Que Colombo convenceu a todos que a terra era redonda. Não era preciso, pois na sua época e mesmo milênios antes, “quase todos os europeus acreditavam que a Terra era uma esfera”. E mais: “em universidades europeias, o Tratado da Esfera, escrito por volta de 1230 pelo astrônomo Johannes de Sacrobosco era leitura obrigatória, um exemplar fazendo parte da própria biblioteca do navegador”.

O livro contém um festival de farofadas que ainda engabelam os idiotas de plantão.

A leitura dos dois texto seguramente assegurará um amplo desabestalhamento comunitário, favorecendo uma enxergância positiva sobre os nossos principais problemas pátrios, sem dolorismos, coitadismos, vitimismos, deusquisismos, entre outras manifestações vigaristosas, típicas de um país que ainda persegue sua maturidade política, social e religiosa. E que, fingidamente, utiliza veste “tinturosa de enorme”, na expressão feliz de Mia Couto, um criativo autor moçambicano.

(Publicado em 08.06.2015, no site do Jornal da Besta Fubana – www.luizberto.com)
Fernando Antônio Gonçalves