SEMEADURA DE DESASSOMBRADO


Muitos ainda não entenderam as razões pelas quais Edward Schillebeeckx, teólogo católico belga, eternizado em 23 de dezembro de 2009, em Nimega (Holanda), onde residia há trinta anos, continua sendo menosprezado pelos de mente tridentina, reacionários de carteirinha.

Nascido em 1914, como padre dominicano, ordenado em 1941, atravessou o século XX como um dos seus teólogos mais influentes. Seus trabalhos lhe valeram repetidos confrontos com o Vaticano, que multiplicava inúteis tentativas de frear os estudiosos mais inovadores. Ele também foi um dos pensadores da renovação da Igreja nos anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II (1962-1965), um acontecimento não muito ressaltado pela atual burocracia inquisitorial vaticana.

Sexto de quatorze filhos, Edward Schillebeeckx iniciou seus estudos de teologia em Louvaina, prosseguindo-os na Sorbonne e no Convento de Saulchoir, onde tornou-se impregnado do pensamento do padre Marie-Dominique Chenu. Especialista num tomismo aberto, ele sempre buscou enfatizar a experiência concreta dos crentes. Ensinou teologia dogmática e história da teologia em Louvaina até 1957, depois em Nimega, na Holanda, até 1983, país no qual seu pensamento exercerá forte influência.

Desde os anos 1960, ele se interessou pela hermenêutica, procurando na interpretação das Escrituras uma maneira de chegar o mais próximo dos fiéis contemporâneos. Desde aquela época ele é acusado de heterodoxia por Roma, sendo sempre “absolvido” graças ao testemunho de seu maior defensor, o jesuíta Karl Rahner, um dos gigantes do século XX.

Assessor do bispo de Utrecht, o cardeal Bernard Alfrink, durante o Concílio Vaticano II, Edward Schillebeeckx trabalhou exaustivamente num dos textos importantes do Concílio, a Constituição Dei Verbum, consagrada à revelação divina, sua transmissão e interpretação. Durante o Concílio, defendeu também o conceito de colegialidade dos bispos para contrabalançar a sempre questionável infalibilidade dos papas. Durante aquela época de efervescência teológica, ele fundou, junto com os colegas teólogos progressistas Hans Küng, Yves Congar e Karl Rahner, a revista Concilium.

Continuando seus trabalhos em teologia e seu ensino, onde privilegiou a vertente histórico-crítica, publica, a partir de 1974, uma de suas obras sobre a cristologia, Jesus, a história de um vivente, editada entre nós pela Paulus, em 2008. Com importante sinalização do autor: “O livro foi escrito em estilo que se pode considerar acessível para qualquer pessoa interessada pelo tema”. O texto lhe valeu uma convocação a Roma para se explicar diante da Congregação para a Doutrina da Fé, herdeira da famigerada Santa Inquisição.

Em 1979, ele foi chamado a se justificar sobre nove pontos fundamentais da fé católica, entre os quais “a verdade revelada, o significado da salvação cristã, a divindade de Cristo como filho de Deus e a concepção virginal de Jesus”… O Vaticano tomou nota dos seus “esclarecimentos”, não optando por qualquer penalidade, muito embora a correlação de forças entre o teólogo e o Vaticano continuasse pelos anos 1980, quando Joseph Ratzinger, futuro papa Bento XVI, gerenciava a Congregação para a Doutrina da Fé.

Após a publicação de um novo livro, em 1981, intitulado O Ministério na Igreja, Schillebeeckx foi novamente interpelado por Roma, pelos “pecados” de abordar a falta de padres e defender a ideia de confiar aos leigos a celebração da Eucaristia. Apesar das explicações oferecidas, o dominicano não convenceu nem Joseph Ratzinger, nem o então papa João Paulo II, que em 1986 faz conhecer sua desaprovação, muito embora deixando o padre holandês sem qualquer sanção formal.

Elevado à condição de Professor Emérito, na Holanda, Edward Schillebeeckx não baixou a guarda. Em 1989, ele assinou, juntamente com 160 teólogos católicos, uma declaração denunciando “a tutela” da Igreja e “o novo centralismo romano”. E ainda encareceram “liberdade de consciência” para o controle da natalidade.

Em 1993, em entrevista à revista católica progressista francesa Golias, Schillebeeckx apontava o risco de uma “identificação da doutrina oficial da Igreja com a reflexão de um teólogo em particular”. Uma beliscada inteligente no então prefeito da Inquisição, o ex-juventude nazista Joseph Ratzinger.

A leitura atenta de dois livros de Edward Schillebeeckx – História Humana: revelação de Deus, Paulus, 2003, e Jesus, a história de um vivente, Paulus, 2008 – ratificará a intenção do teólogo recentemente eternizado: a de “construir uma ponte sobre a ruptura entre a teologia acadêmica e a necessidade concreta dos fiéis”. Para melhor ultrapassar as ideias historicamente condicionadas, favorecendo um seguir com mais consistência as pegadas do nosso Irmão Libertador.

PS. Para todos, uma Semana Santa de muita reflexão sobre as mensagens do Homão da Galileia, um revolucionário não-violento, arretado de ótimo, que pregou a solidariedade fraterna entre todos os povos, crentes e não-crentes. E que nem tinha curso superior de teologia. Nem era purpurado.

(Portal da Revista ALGOMAIS, 29/03/2010, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves