SCHWEITZER, SERVO DA CRIAÇÃO


Certa feita me foi apresentado, na barraca de “louríssimos guaranás” do João Silvino da Conceição, na praia de Porto de Galinhas, um simplório aspirante a bispo que pretendia realizar um trabalho pastoral pelo Nordeste, seguindo uma metodologia muito similar a que fora implementada por Dom Hélder Câmara, como se fosse possível tal aventura, dada a gritante distância entre as duas personalidades. A do Emérito Arcebispo de Olinda e Recife, um bispo sempre muito amado por esmagadora maioria, desabrida, inspiradora por excelência e dotada de excepcional caráter, coragem plena sem puritanismos nem simulações piegas. Apesar da baixa estatura, um gigante de entusiasmo e amor a Deus e ao próximo. O segundo, todo pequeno, sem mínima vocação pastoral, soldado raso de exército brega, carreirista por derradeiro, com reduzida eira e quase nenhuma beira no quesito caráter ilibado.

Durante os salgadinhos servidos antes do prato principal, não sei porque cargas d’água o nome de Albert Schweitzer surgiu, talvez emergido pelo noticiário sobre a edição do seu livro A Busca do Jesus Histórico – Um estudo crítico de seu progresso, Editora Novo Século, 2005. Lançado em língua postuguesa após 70 anos de espera. Foi quando o tal bispinho, imaginando-se acima de qualquer suspeita, declarou que a leitura do texto de Schweitzer não era de todo recomendável, certamente fazendo coro com as vozes que “revelavam, antes de tudo, a intolerância daqueles que tinham nos dogmas, a expressão hermética, tirânica e inegociável da fé cristã”, na opinião do teólogo Doutor Jaime dos Reis Sant”Ana, autor de O Sagrado em José Saramago.

Confesso que a minha desadmiração por aquela coisa metida a religioso acentuou-se consideravelmente. E uma sensação desagradável tomou conta dos presentes, a descontração somente voltando a acontecer com a chegada de uma excepcional inteligência cearense, aplaudido psicanalista conhecedor profundo das fogueiras da vaidade que ofuscam intelectos que bem poderiam melhor servir aos seus derredores se menos doentios fossem.

De verdade, a má indigestão sentida somente dissipou-se semanas depois, quando principiei a conhecer melhor a trajetória existencial de Alberto Schweitzer, um nascido em 1875, teólogo, músico, filósofo e médico. Um dos melhores intérpretes de Bach, também muito aplaudido pastor luterano, que decidiu dedicar suas atenções e cuidados, logo após completados trinta anos de vida, aos africanos das colônias francesas, estabelecendo-se no Gabão, onde exerceu seu ministério até eternizar-se, em 1965.

Albert Schwwitzer, medicava mais de 40 doentes por dia, ensinando o Evangelho numa linguagem sem rebuscamentos, oferecendo exemplos extraídos da natureza para demonstrar a necessidade de uma mais concreta solidariedade entre todos os seres vivos. À margens do rio Ogooué, Schweitzer, com a ajuda dos nativos, construiu um hospital, o qual equipou e manteve com recursos seus, mais tarde suplementados por doações individuais e institucionais. Foi preso como estrangeiro inimigo (alemão), tendo sido levado para a França como prisioneiro de guerra durante a Primeira Guerra Mundial.

Voltando suas atenções para questões mundiais, durante sua permanência na Europa escreveu Filosofia da Civilização, 1923, onde delineou sua filosofia pessoal de “reverência pela vida”, um princípio ético relativo a todas as coisas vivas, que ele considerava essencial para a sobrevivência planetária. Algumas das suas reflexões são por demais conhecidas: “O mundo tornou-se perigoso, porque os homens aprenderam a dominar a natureza antes de se dominarem a si mesmos”. … “A nossa civilização está condenada porque se desenvolveu com mais vigor materialmente do que espiritualmente. O seu equilíbrio foi destruído” … “Os anos enrugam a pele, mas renunciar ao entusiasmo faz enrugara alma”.

Proclama Rubem Alves, admirador de carteirinha de Albert Schweitzer, que sua história deveria ser sempre contada para as crianças nas escolas. Até para reduzir a má impressão deixada nas andanças daquele bispinho de postura raposeira, disseminador de “desaprendências religiosas”, aquelas que iludem os que, ingenuamente, imaginam positiva correlação perfeita entre salvação e igreja.

(Portal da Globo Nordeste, 04.03.2010, Blog BATE & REBATE)
Fernando Antônio Gonçalves