SANTA E PECADORA
Um dos meus amigos mais amados, Dom Helder Câmara, cearense pernambucanizado e muito odiado pelos militares golpistas de 1964, costumava dizer, vez por outra e em roda muito reservada de admiradores, que o Vaticano era a “coisa mais antievangélica que conhecia”, ainda que conservasse extrema fidelidade à sua estrutura direcional.
Há poucos dias, quase coincidentemente, dois fatos convergentes aconteceram no mundo católico romano. Primeiro, o processo iniciado pelo Vaticano contra os que vazaram informações ditas altamente sigilosas, mesmo contrariando a reflexão joanina de que “o vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem para onde vai” (Jo 3,8). Que ainda proclamava que todos que conhecerão a verdade serão libertados (Jo 8,32). O segundo acontecimento, no Brasil, foi o lançamento do livro A História Secreta da Igreja: guerras religiosas, inquisição, caça às bruxas, escândalos, corrupção, Michael Kerrigan, SP, Editora Europa, 2015, 224p. Seu autor é escritor e crítico literário inglês, atualmente residindo em Edimburgo, Escócia. Graduado em Oxford, escreve periodicamente no The Scotsman, o principal jornal da Escócia, também participando do suplemento literário do The Times, sendo dele o também consagrado Dark History of Roman Emperors, 2011, editado no Brasil pela editora Europa.
Ilustrado com 180 fotografias, pinturas e ilustrações, o livro de Kerrigan retrata o lado infame da dinâmica vaticana, apresentando casos de assassinatos, torturas e orgias protagonizados por pontífices patifes. Um dos casos mais terríveis é o denominado Sínodo do Cadáver, em que um bondoso papa chamado Formoso foi desenterrado, julgado por seu sucessor Estevão 7º e jogado no Rio Tibre. Além do gesto tresloucado do papa João 12, que castrou um de seus cardeais, cegou outro e chegou a lançar um brinde ao demônio num dos seus incontáveis bacanais.
No livro, terceiro capítulo, está escrito com todas as letras: “A Igreja medieval tinha uma maneira estranha de demonstrar o amor cristão. Clérigos e reis consolidaram sua autoridade e poder orquestrando ataques a muçulmanos, judeus e outros grupos considerados hereges.” Até a Terceira Cruzada, liderada por Ricardo I, mais conhecido como Ricardo Coração de Leão, foi de uma crueldade jamais superada. O relacionamento dele com Saladino (Salah ad-Din Yusuf ibn Ayyub, um guerreiro de origem curda) foi profundamente conturbado e vingativo. Para citar um exemplo: após conquistar a cidade síria de Acre, 1191, Ricardo iniciou a execução de 2.700 prisioneiros muçulmanos, no que foi rebatido por Saladino com a eliminação em massa de capturados cristãos.
O livro também revela como funcionou a sanguinária Inquisição e conta a história de algumas das suas mais célebres vítimas, como Galileu Galilei, que só escapou da morte porque foi obrigado a negar publicamente suas ideias. As crueldades e as excentricidades dos soberanos de Roma são contadas sem subterfúgios. Desde episódios conhecidos, como o incêndio de Roma, até os mais obscuros, como o falso casamento de Nero com um homem e a história do reinado de Cômodo, que quis rebatizar Roma com seu próprio nome. No Livro dos Mártires, escrito por John Fox no século16, se encontra uma rotina de crueldade: “Por volta da meia-noite, um oficial e dois escravos turcos tiraram o senhor Lithgow de seu cárcere, mas só para levá-lo a outro infinitamente pior. Conduziram-no por vários corredores até uma cela na porção mais remota do palácio, além do jardim. Lá, acorrentaram-no e estenderam suas pernas com uma barra de ferro de aproximadamente 90 centímetros de comprimento, cujo peso era tal que o obrigava a ficar continuadamente deitado de costas no chão, sem que pudesse fica em pé ou mesmo sentar-se. Lithgow foi abandonado nessa condição durante muito tempo”.
Num capítulo que deveria ser lido e relido por todos os proclamados cristãos, o décimo, o século 20 é descrito como uma era repleta de atentados, terroristas, golpes e assassinatos, onde a Igreja Católica foi vítima e testemunha. O regime de Franco, na Espanha, assassinou homens, mulheres e crianças aos milhares sob as bênçãos implícitas da Igreja. O próprio futuro papa Pio XII foi núncio papal na Alemanha, embora nunca tendo se conformado com as barbaridades criminosas do Terceiro Reich, sendo um conservador de notável densidade cultural, ainda que mais preocupado com as ameaças do bolchevismo. O Campo de Concentração de Dachau abrigava, somente ele, mais de 2.600 padres. Na Alemanha, mais de 2.500 padres foram executados pelos nazistas.
Algumas indagações século XX continuam sem respostas até hoje: teria o papa João Paulo I falecido de morte natural?; quais as reais ligações do papa João Paulo II com Sílvio Berlusconi, empresário bilionário da mídia italiana?; por que até hoje não foram identificados os autores do Massacre de Bolonha, em 1980; e por que o Vaticano continua inflexível em relação ao controle da natalidade, mesmo diante dos catastróficos efeitos da AIDS na África?
Lamentavelmente, o escândalo da pedofilia permanece enxovalhando a Igreja, principalmente na Irlanda e nos Estados Unidos. Para se ter uma ideia, em 1984, 90% dos irlandeses frequentavam regularmente a missa, percentual reduzido para 18% em 2011.
Na área financeira, as últimas revelações muito contrariaram o Papa Francisco, a ponto dele determinar abertura de processo contra os que divulgaram algumas das últimas patifarias. Continuando “santa e pecadora”, a Igreja Católica, como as demais instituições cristãs, apenas fortalece o Movimento Com Jesus, Sem Igreja, que se amplia celeremente no continente europeu, ampliado a espiritualidade adenominacional, como preconizava Ivan Illich, o monsenhor de Cuernavaca, México: “Jamais confundir salvação com Igreja”.
Fernando Antônio Gonçalves
Recife, dezembro 2015