SABERES, SABORES E BREADURAS


Impossibilitado de sair de casa, desprovido que estava de canoa e remos, reuni alguns vizinhos de prédio para uma eleição diferenciada, com queijos, vinhos e croquetes preparados a capricho por duas especialistas. A cédula de votação era composta de três partes, onde cada um indicaria os saberes, os sabores e as breaduras acontecidas nos últimos tempos nesta Veneza Brasileira, de rios, pontes e múltiplos alagamentos, alguns até relembrando 1975, quando a cidade quase inteira sofreu uma cheia cabeluda.

O resultados, após alguns desempates, foi registrado sem qualquer critério de classificação, as anotações sendo feitas sob o bel prazer do Conceição, que odiava, desde os tempos militares das violências coturnais e torturosas, o silêncio dos cordeiros, sempre se proclamando autêntico cabrito, olhos abertos e narinas empinadas, aplaudindo e apupando aqueles que fizessem por merecer. Eis a apuração:

1. O reconhecimento do Supremo Tribunal Federal das uniões homoafetivas, dissociando definitivamente o Estado dos diversos credos religiosos. Todos os presentes conheciam duplas de ees ou elas que viviam bem mais dignamente do que alguns pares héteros, que se comportavam sob cafajestadas intensamente horripilantes para filhos, netos e agregados. Alguns casos foram narrados, inclusive daqueles que se fingem de heteroafetivos para não chamar muito a atenção do derredor. Programado para breve um Congresso de Não-assumidos, para incentivar a libertação dos sitiados em armários conjugais. Será convidado até um homofóbico deputado federal, que urrou e balançou muito o rabo, ratificando sua demonização mental, quando tomou conhecimento da decisão do STF.

2. Aplausos calorosos para a reflexão do ex-ministro da Justiça Fernando Lyra, dias atrás para os jornalistas Gabriela Bezerra e Paulo Augusto, Jornal do Commercio: “Aécio é competente, é carismático, mas está sem conteúdo para evoluir na política como liderança nacional. … Eu acho que Eduardo Campos passou na frente. Eduardo está sendo um excelente governador, é renovador e inovador. Ele assumiu hoje o papel de liderança nacional. Sendo de um Estado pequeno como é Pernambuco e de um partido pequeno como é o PSB”. Unanimidade dos presentes.

3. O lançamento do Partido Militar Brasileiro, idealização de civis e militares, parece anunciar tempos diferenciados para a política brasileira, podendo ser ele a bandeira direitista para “a moralização da política brasileira, cujos partidos há muito deixaram de ser um sustentáculo da democracia”. Torçamos para ele não reproduza os camisas-pardas alemães, que pintaram e bordaram com o apoio de alas cristãs fundamentalistas. O livro A Chegada do Terceiro Reich, de Richard Evans, ed. Planeta, é excelente leitura para quem não sabe nada sobre o assunto. E para os que desejam saber um pouco mais.

4. Uma questão percorre os ambientes católicos do mundo inteiro: o que o papa Bento XVI poderá fazer com o cardeal Angelo Sodan, ex-secretário de Estado do papa João Paulo II, atualmente decano do Colégio dos Cardeais, que conduzirá os procedimentos para o sucessor do atual papa, se este vier a falecer? O problema é que Soldano tem um passado complicado em torno de abusos sexuais. Além de ser defensor do padre mexicano Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, reconhecidamente culpado de má conduta, também de abusos sexuais.

5. Entusiasmo geral com a entrevista concedida à revista Carta Capital pelo pastor Ricardo Gondim, 57 anos, mestre em teologia pela Universidade Metodista e líder da Igreja Betesda. Segundo ele, “Deus nos livre de um Brasil evangélico. … Existe no Brasil um conservadorismo extremo em algumas áreas e um relaxamento em outras. Há aberrações éticas enormes. … “Uma igreja que, para se sustentar, precisa de campanhas cada vez mais mirabolantes, um discurso cada vez mais histriônico e promessas cada vez mais absurdas está em decadência”. E foi mais além: “Advogo a tese de que a teologia de um Deus títere, controlador da história, não cabe mais. É incompatível a ideia de um Deus controlador com a liberdade humana”. Concordo muito com Simone Weil, uma judia convertida ao catolicismo durante a Segunda Guerra Mundial, quando diz que o mundo só é possível pela ausência de Deus. Vivemos como se Deus não existisse, porque só assim nos tornamos cidadãos responsáveis, nos humanizamos, lutamos pela vida, pelo bem. A visão de Deus como um pai todo-poderoso, que vai me proteger, poupar, socorrer e abrir portas é infantilizadora da vida”.

6. Parabens aos dirigentes do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, por banirem de uma unidade do Colégio, em São Cristóvão, em 19 de abril último, o nome do almirante Augusto Rademaker Grünewald, militar que integrava o trio que promoveu um golpe dentro do golpe, impedindo a posse do vice-presidente Pedro Aleixo. Uma vitória capitaneada por uma professora aposentada do Pedro II, Helena Godoy, que soube manter viva a chama da indignação.

E no final da noite, uma faixa foi colocada na área interna do prédio: “É muito feliz e com plena posse de si o ser humano que espera o amanhã sem inquietude”. Uma reflexão de Sêneca que muitos dos presentes já conheciam, admiravam e seguiam.

(Publicada em 10/05/2011, no Portal da Revista ALGOMAIS, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves