RUBENS PAIVA, IN MEMORIAM


Há quarenta anos, num janeiro de 1971, “a casa do ex-deputado e pai de cinco filhos Rubens Paiva é invadida por agentes do serviço secreto do governo militar. Ele é levado para prestar depoimento e não volta mais”. E os dois últimos parágrafos do epílogo do livro Segredo de Estado – O Desaparecimento de Rubens Paiva, de Jason Tércio, editora Objetiva, 2011, traduzem a esperança de encontrar os seus restos mortais, sonho de familiares e amigos que jamais fenecerá: “Nunca é tarde para essa missão. As ossadas dos Romanov, a família real russa fuzilada pelos bolcheviques em 1918, só foram encontradas mais de sessenta anos depois, numa cova clandestina no meio de uma erma floresta. Mas tudo isso só poderá acontecer como decisão de Estado, quando o Brasil for uma nação com maturidade política e coragem suficientes para, finalmente, se olhar no espelho e encarar seus fantasmas, erros e medos”.

Em plena manhã de uma noite insone, olhos marejados e alma enojada com os brutamontes assassinos que enlamearam a História Republicana do Brasil, percorri os dois últimos parágrafos acima citados do livro do jornalista Tércio, autor de vários outros textos premiados, que também trabalhou na BBC em Londres e exerce ainda as funções de tradutor. Um livro que deve ser lido, relido e recomendado nos quatro cantos do país, num momento em que uma ex-torturada assume a Presidência da República. E que deve fortalecer a luta e anseios pelos relatos de uma Comissão de Verdade, sem os quais continuaremos a nos revelar para o mundo inteiro como uma nação de pusilânimes, que escamoteia fatos acontecidos nos porões de uma assassina ditadura de civis e militares.

O livro foi construído após meticulosas pesquisas, escrito numa linguagem literária, onde uma dramática experiência de dor ressalta as tensas relações entre Estado e sociedade, revelando dados históricos de um dos períodos mais turbulentos da vida brasileira, sempre denunciado pelos que postulam Liberdade e Justiça para toda nação.

Um dos trechos do livro bem demonstra o cinismo de um ditador de plantão, à época de nome Emílio Garrastazu Médici, que se revela por ocasião da entrega de uma carta de Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, pelo então deputado Batista Ramos. Uma carta respeitosa, onde se explicita o inconformismo de uma esposa pelo desaparecimento, mais de sessenta dias decorridos, de um marido e pai, ex-deputado e empresário bem sucedido. O livro ressalta a frieza de um ditador: “Médici dobra a carta, enfia no bolso o envelope, acende um cigarro e liga o radinho de pilha sobre a mesa”.

Em outro texto do autor, o reverso da medalha. A bravura do então senador pernambucano Marcos Freire, que na tarde de 3 de junho de 1971, com destemor, sacode o plenário do Congresso Nacional, inserindo em seu pronunciamento trechos das cartas enviadas por Eunice Paiva ao ditador de plantão. Uma bravura jamais esquecida pelo povo de Pernambuco, que ainda aguarda a verdade sobre a tragédia aviatória que vitimou o senador, que conhecia bem um dos trechos shakespereanos de Macbeth: “Sai, mancha maldita, sai, estou mandando! Será que estas mãos nunca ficarão limpas? Ainda há cheiro de sangue aqui !”

A Nação Brasileira aguarda a aprovação, pelo Congresso Nacional, do projeto de lei enviado àquela Casa pelo presidente Lula em maio do ano passado. Uma lei que terá por função “promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior”. E a atual jovem ministra Maria do Rosário, dos Direitos Humanos, em sua posse, não titubeou: “Faço um apelo à Câmara dos Deputados, poder de onde venho, e ao Senado Federal, com os quais quero manter uma relação de muita proximidade e respeito. Que façamos um bom e democrático debate e possamos aprovar o Projeto de Lei que cria a Comissão da Verdade”. E disse mais: “Não queremos aqui fazer um embate entre parlamentares contra ou a favor da medida, mas resgatar a nossa história e contá-la de forma completa”. Segundo ela, “devemos dar seguimento ao processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado por graves violações de Direitos Humanos, com vistas à sua não repetição, com ênfase no período 1964-1985, de forma a caracterizar uma consistente virada de página sobre esse momento da história do país”.

Apesar dos retrógrados do Congresso Nacional, alguns deles até disfarçados de democratas, os amanhãs brasileiros serão bem diferentes, com muita civilidade política e democracia participativa. Onde os sacripantas, os cínicos e os fascistas, os que se delumbram com as tiranias de todos os lados e os que se imaginam eternamente protegidos pela insanidade do arbítrio, perceberão que o caminho se faz andando, após suas atrocidades serem reveladas para que não mais sejam repetidas.

PS. Ter uma sepultura é o direito mais primordial da humanidade. Como desejam, entre tantas outras esposas e mães, Eunice, a esposa de Rubens Paiva, e Dona Elzita, mãe de Fernando Santa Cruz.

(Publicada em 24.02.2011, no Portal da Globo Nordeste, blog BATE & REBATE)
Fernando Antônio Gonçalves