RETEMPERANDO ENXERGÂNCIAS


No último domingo, um volume bem empacotado foi deixado na portaria do edifício onde moro, com apenas uma singular dedicatória: De Nando para Nando, um notável Fernando. Sem saber do que se tratava e a sua procedência, vibrei quando me vi diante da nova edição, revista e ampliada, do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, talento luso que me entusiasma nos meus instante de leitura não-profissionalizante. Editado pela Companhia Das Letras em 2011, o livro foi organizado por Richard Zenith, autor de uma introdução elucidativa, contendo as suas orelhas uma apresentação de Maria Lúcia Dal Farra, poetisa brasileira comparada à consagrada Adélia Prado. Nelas, Dal Farra classifica Livro do Desassossego como “um diário íntimo, uma auto-biografia escrita pelo ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa,,o chamado Bernardo Soares.” E vai mais além: “O desassossego que nela pulsa reage dentro dessa jaula conceitual, obrigando-nos a reconhecer que se trata, na verdade, de um antirromance.”

O mimo recebido é um livro de muita valia para os tempos de agora, quando a Língua Portuguesa retoma seu destaque no cenário internacional, depois da consagração de Saramago como Nobel de Literatura. E o presente veio com uma dedicatória misteriosa que dificilmente se diluirá na minha memória de homem amadurecido, alguns bons quilômetros rodados, com decepções cívicas e afetivas, todas seguramente deletadas pelo nível de felicidade atualmente compartilhado.

No livro presenteado, uma dedicatória foi redigida, sem assinatura, caligrafia firme e bem temperada: “A Língua Portuguesa é sempre um estímulo para quem brinca e vive de domesticá-la. Que nossos muitos e muitos anos de companheirismo nos oportunizem um conviver cada vez mais fraternalmente feliz”.

Todas as reflexões do Fernando Pessoa deveriam ser levadas na mais alta consideração pelas nossas autoridades educacionais, que bem poderiam deflagrar um consistente PND – Programa Nacional de Desanalfabetização, capaz de elevar os atuais níveis de enxergabilidade cidadã. Que ampliariam a criticidade geral, proporcionando um discernimento pudesse afugentar para bem longe as diversas modalidades de alienação, inclusive as religiosas, que estão enriquecendo uns poucos e abestalhando milhões de brasileiros. Eis uma amostra:

“Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma” … “A palavra falada é um fenômeno natural; a palavra escrita é um fenômeno cultural. O homem natural pode viver perfeitamente sem ler nem escrever. Não o pode o homem a que chamamos civilizado: por isso, como disse, a palavra escrita é um fenômeno cultural, não da natureza mas da civilização, da qual a cultura é a essência e o esteio”.

Fernando Pessoa, através do Bernardo Soares, leva em consideração os balanceamentos existentes entre a âncora da tradição e o livre jogo criativo, “um movimento ao mesmo tempo programático e anti-normativo”, pois, segundo ele, “o entendimento dos símbolos e dos rituais exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele, morto para eles”. E nomina: a simpatia, a intuição, a inteligência, a compreensão e a mão do Superior Incógnito.

A escritora Maria Aliete Galhoz, que organizou as Obras Poéticas de Fernando Pessoa, da Nova Aguilar, diz que o poeta “impôe-se ao reconhecimento, ao respeito até, se bem que não à solidariedade”, porque soube soerguer-se acima das mediocridades de então, tornando-se aceito e até necessário pelos que realmente sabiam enxergar além do apenas moderno.

O poeta Fernando Pessoa “favoreceu”, pela sua competência, a emersão de um novo Portugal, bem mais dinâmico culturalmente, assombrosamente lúcido em busca do tempo perdido, num século XXI que ainda não disse para que veio, humanisticamente falando. Posto que é ele próprio quem se manifesta: “Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso”.

Saibamos, pois, nos amadurecer!

(Publicada em 04.11.2013, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves