RELEMBRANDO UM JOÃO, NATAL 2009


Um grande poeta, o João Cabral de Mello Neto,
Que ama os Severinos de Maria,
jamais esquecendo o seu Recife,
o Recife dos rios e das pontes,
também Recife dos mangues e dos alagados,
dos caranguejos capturados
pelos meninos de rua, todo santo dia
que mamando leite de lama,
também são Severinos de Maria.
Muitos Severinos, “iguais em tudo na vida
cabeça grande,
ventre crescido,
pernas finas,
sangue que tem pouca tinta,
a morrer de morte igual,
morte severina,
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia”.
Severino de Maria
“que queria espalhar-se mais
ter uns hectares de terra nas várzeas
não chão batido, de areia lavada”.
Severino de Maria
morador das periferias
do Oiapoque ao Chuí,
que queria voar mais livre
e entender que liberdade
não é apenas uma calça comum e desbotada.
Severino de Maria
estamos vivendo uma econômica ilusão,
desmemoriados que somos,
pouco importando
o alerta de André Malraux:
“a dignidade é o contrário da humilhação”.
Severino de Maria
nós lhe pedimos perdão:
importar é o que importa,
quando o que importa mesmo
é teto, escola e feijão.
Severino de Maria
“a levar coisas de não
fome, sede, privação,
só morte tendo encontrado
quem pensava encontrar vida
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina”.
Severino de Maria
pai dos meninos de rua
dos trombadinhas do Marco Zero,
de Santo Amaro, Iputinga,
da Praça Chora Menino,
advindos da caatinga,
meninos que roubam
pra sobreviver
e vivem roubando abençoados por Deus!
Severino de Maria,
“seus filhos moldura esquálida
criança pálida
criança franzina
menino guenzo
tão feio como um sim
numa sala negativa”.
Severino de Maria,
pai dos nossos funcionários
que nada entendem de mais-valia
mas que recebem todo dia
a agonia dos seus salários.
Severino de Maria,
meu irmão de caminhada
“como é difícil entender,
só com palavras, a Vida
ainda mais quando ela é
esta que se vê, severina”.
Severino de Maria,
nós ainda não sabemos
ouvir as meninas,
evitar a mediocridade,
incrementar a emoção,
o contato,
a criatividade,
ouvir o que não foi dito,
perceber o corporal,
registrar a dor e o mal,
enaltecer o que é nobre,
imaginar o que é ser pobre.
Severino de Maria
nós ainda não sabemos
elaborar um querer coletivo
porque a casa está troncha
muito mano está faminto
não se nascendo outra vez
e ao invés de galo, vive-se pinto.
Mas nós desejamos,
Severino de Maria,
nos livrar contigo
dessa cova de bom tamanho
que é nossa parte nesse latifúndio.
E também nos libertar,
Severino meu irmão,
de uma cultura que não é nossa
consequência maior de uma fossa
que é deserta de idéias
e que nos foi imposta
prá quem gosta e quem não gosta.
Precisamos pensar mais,
Severino de Maria,
para denunciar e anunciar,
conhecer pra criticar
combater o bom combate
com bagagem cultural
enxotando todo mal.
Ajude-nos, Severino caminhante,
para que possamos ajudá-lo
a manter nossa altivez.
Com sua voz, acharemos nossa vez,
nossos braços, seu regaço,
seu espaço, nossa sobrevivência.
Você é Severino de Maria
porque somos Nação apartada,
submissa, encarcerada,
Nação maior de agiotas
que, lá fora, querem mais,
nos fazendo sempre crer
na inexistência de outras alternativas
para também podermos SER.
Meu companheiro de sina,
muitos nos imaginam
uma nação severina,
caudal de alienados,
sem presente e sem passados,
sem teóricos nem cientistas,
surdos e mudos, sem vistas,
sem virilidade e ardor
por uma causa de amor
que é amar a todo um povo,
expulsor de estrangeiro,
povo muito brasileiro.
Somos menos que você,
Severino de Maria,
pois de você precisamos
e do seu suor escorrido.
A sua própria liberdade
será, a bem da verdade,
nossa maioridade.
Severino de Maria,
neste encontro falta você.
Você não veio, ausentou-se.
Mas nós, cristãos, aprendemos
que o nosso bom viver
vai precisar de você
e do seu modo de agir.
Desse seu jeitão de rir
amarelo como os seus,
dessa maneira sublime
de pensar também em Deus.
E de olhar desconfiado
pés descalços, calejados,
esperança sem igual
de ver bem perto um final.
Severino de Maria,
obrigado, aqui e agora,
pois em você, a toda hora,
desesperança não há.
Obrigado por nos fazer
compreender pra transformar
ensinando a todo instante
à mente que se prepara
pra ficar sempre ao seu lado,
lado a lado, companheiro,
dizendo pro mundo inteiro
fico contigo, não saio,
nem sob o chicote e a vara:
pois “só deixarei o meu Cariri,
no último pau-de-arara”.
Fernando Antônio Gonçalves