REFLEXÕES OPORTUNAS


Considero o conteúdo do número recente (337) da Concilium – Revista Internacional de Teologia de importância ímpar para os tempos de agora, quando se assiste afirmações e contra-afirmações religiosas idiotizantes. Reflexos de uma era do planetário triunfo do business sobre o valor humanístico, atrelado a uma modernidade regressiva, onde ares pós-modernos estão impregnados de arcaísmos século XIX. E de uma tecnociência enfrentada por regressões analíticas históricas que embaraçam o caminhar evolucional da humanidade. Involuções encasteladas por discussões oportunistas entre teísmos fundamentalistas e ateísmos agressivos.

O tema geral da revista por si só já provoca: Ateístas de qual Deus? Artigos acima do ramerrame fastidioso que atenta contra a inteligência do mundo tornam este número da revista um depositário de reflexões luminosas. Alguns estudos aguçam pelos seus títulos de primeira ordem: Salvar o espírito; Ateísmo e imagem cristã de Deus; Cristianismo: uma religião?; Naturalização das religiões;Ateísmo e religião no pós-socialismo; “Emerging Church”.

Dos textos da Concilium 337, três despertaram interesses no GRE – Grupo de Reflexões Espiritualistas que integro, dezoito pessoas transecumênicas que bimensalmente se reúnem para encontros matinais ou vespertinos de final de semana, onde se estuda e se compartilha temas publicados em revistas, livros e jornais especializados, brasileiros ou estrangeiros. O primeiro texto atraente, Salvar o espírito, é de autoria de André Comte-Sponville, filósofo francês ateu, umas das inteligências contemporâneas mais aplaudidas na Europa e resto do mundo. Se classificando como “um ateu não dogmático e fiel”, ele explica o seu não-dogmatismo: que o ateísmo dele não é um saber, já que nenhum saber, sobre Deus ou sobre sua inexistência, é possível. Sobre Deus, diz ele, a questão excede todo o saber possível. E revela: “se você encontrar alguém que lhe diz: ‘Sei que Deus não existe’, não se trata primeiramente de um ateu, mas de um imbecil. Da mesma forma se você encontra alguém que lhe diz: ‘Eu sei que Deus existe’”. E ele mesmo proclama: “Um ateu não dogmático não é menos ateu que um outro. Ele é simplesmente mais lúcido.” E a razão dele se classificar como ateu fiel é primorosamente relevante: “por mais ateu que eu seja, e já há quarenta anos, permaneço ligado, com todas as fibras de meu ser, a certo número de valores que foram forjados e transmitidos, ao menos em parte, nas grandes tradições religiosas, e especialmente, já que é minha história, na tradição judeu-cristã”. E é contundente: “Se Deus existe ou não, o que isso muda na grandeza do Eclesiastes? … Jesus era um judeu piedoso e isso não me impede de reconhecer, como Spinoza, a beleza, a nobreza, a profundidade da sua mensagem.”

O segundo texto é do jesuíta Jon Sobrino, diretor do Centro Monseñor Romero da Universidade Centroamericana de San Salvador. Arrogância e humildade – Notas sobre a atualidade eclesial é o título. Onde ele aponta atraso e leviandade em não punir os sacerdotes praticantes de pedofilia, não colocando as vítimas no lugar central. E denuncia, na Igreja, a falta de honestidade dela diante dos seus pecados e da falta de humildade e arrogância em reconhecer seus erros, como os de Gregório VII e Inocêncio III, os horrores da Inquisição, a bênção da conquista da América e da escravidão da África, o Syllabus de Pio IX, a condenação do Iluminismo, da democracia, do socialismo, reabilitando Galileu como se nada tivesse acontecido, hipocritamente declarando ser contra a violência. Como se a Igreja sempre tivesse razão, possuindo o privilégio da intocabilidade, sentindo-se sempre superior às demais instituições, onde o papa detém todo o poder: “ordinário, supremo, pleno, imediato e universal” (Direito Canônico 331). E Jon Sobrino reproduz parte de uma entrevista concedida pelo Pe. José Maria Diez-Alegria, eternizado a 25 de junho do ano passado: “Finalmente penso que a Igreja Católica em seu conjunto traiu Jesus. Esta Igreja não é o que Jesus quis, mas o que quiseram ao longo da história os poderosos do mundo. Estas são as ideias que agora tenho, surdo e meio cego, esperando a morte com muita esperança e muito humor”.

O terceiro texto traz notícias auspiciosas sobre um movimento jovem que está desafiando as Igrejas estabelecidas: o Emerging Church, um fenômeno ainda não claramente definido, ainda que irreversível, onde se busca novas orientações espirituais, não mais em manuais de instrução de como construir comunidades perfeitas. Suas características principais são: a. radicalidade da entrega a Jesus na cultura pós-moderna; 2. redescoberta da missão; 3. santificação total da vida; 4. organismo, não organização; 5. diante das grandes Igrejas, pequenas comunidades; 6. vida cristã em rede. Seguramente, novas formas de seguir o Homão da Galileia, nosso Irmão Libertador.

De parabéns a editora Vozes, pela coragem se seguir adiante, apesar dos cavilosos entretantos e senões vaticanos. Uma editora que “após percorrer longamente o caminho da análise, chegou à luminosas sínteses”, parodiando Teilhard Chardin, um detestado pelos encardidos medíocres da sua época.

(Publicada em 19.05.2011, no Portal da Globo Nordeste, blog BATE & REBATE)
Fernando Antônio Gonçalves