RECRIANDO UTOPIAS


A PRIMEIRA
Um livro alcançou, meses atrás, a 12ª. edição no Brasil. De Thomas Merton, francês nascido em 1915, convertido ao cristianismo em 1938, ordenado aos 34 anos e eternizado em 1968, A Via de Chuang Tzu, Vozes, analisa o considerado maior filósofo asiático, de excepcional sabedoria num mundo que necessita voltar a conhecer suas raízes, sob pena de naufragar num fisiologismo letal.

Merton ressalta o significado do taoismo num linguajar simples sem simploriedades, humildade sem subserviência, despojamento sem vitimizações, favorecendo o fortalecimento de uma mentalidade despojada de sonhos alucinatórios descabidos. Tampouco messiânicos.

As citações de Merton são frutos de cinco anos de leituras, estudos, notas e meditações. Que se transformaram em reflexões sobre os pensamentos, “aventuras em interpretações pessoais e espirituais”. Ele mesmo justifica sua vontade de estudar Chuang: “Ele é grande demais para necessitar de quaisquer explicações de minha parte. Se Santo Agostinho pôde ler Plotino, se Santo Tomás pôde ler Aristóteles e Averróis (ambos bastante distanciados do cristianismo, nem mais do que jamais o fora Chuang Tzu!), e se Teilhard de Chardin pôde fazer um amplo uso de Marx e Engels em sua síntese, acho que me podem desculpar estas minhas relações com um recluso chinês, que compartilha do clima e da paz, da minha própria solidão, e que é o meu tipo característico de pessoa”.

Na Bíblia há um livro que muito se assemelha aos clássicos taoistas, o Eclesiastes, onde muitos dos ensinamentos lá contidos estão explicitados em Chuang Tzu e Tao Te Ching, formando um todo que renuncia “aquelas espiritualidades exaltadas e não encarnadas que dividem o homem contra si mesmo, colocando uma metade no reino angelical, e, a outra, num inferno terreno”.

Chuang diferencia um homem de espírito de um homem verdadeiro. O primeiro “não é muito íntimo de ninguém, nem muito distante. Interiormente, permanece atento e mantém o equilíbrio para não entrar em conflito com ninguém”. O segundo “vê o que o seu olho vê e nada acrescenta do que ali não se encontra. Ouve o que o ouvido escuta e não percebe coisas imaginárias, exagerando ou subtraindo a realidade”.

Chuang proclamava a existências de três classes de pessoas vis: os joguetes, os sanguessugas e os manipuladores. Os primeiros, tolos por completo, submetem-se sempre à linha de conduta do superior. Os segundos são semelhantes aos piolhos do corpo de uma porca, imaginando-se ali eternos, nunca percebendo que, um dia, o açougueiro virá de facão amolado. E os terceiros vivem de gabinete em gabinete, sem jamais deixar a ribalta, tampouco se esquecendo de estacionar suas carroças.

E ainda há aqueles que praticam ardentes babaovismos, com “nobilitantes” intenções hedonistas.

A SEGUNDA
Quando o papa Francisco, recentemente na Colômbia, pediu cautela para com todas as ideologias, dando uma baita sacudidela nos extremos do mundo político contemporâneo, lembrei-me de um pequeno livro lido por volta de 2000, editado pela Vozes, integrando a coleção Zero à Esquerda, possuindo como integrantes do seu Conselho Editorial Otília Arantes, Roberto Schwartz, Modesto Carone, Fernando Haddad, Maria Elisa Cevasco e José Luís Fiori. Uma coleção que editou inclusive Desorganizando o Consenso e Em Defesa do Socialismo, do atual prefeito de São Paulo Fernando Haddad, o primeiro tendo Haddad apenas como organizador dos ensaios.

Da coleção, à época apenas me chamou a atenção o trabalho do economista Paulo Singer intitulado Uma Utopia Militantes – Repensando o Socialismo, Petrópolis, RJ, Vozes, 1998. Que na Introdução, explicava a razão do livro: “a preocupação de reconceituar a revolução social e de reavaliar suas perspectivas e possibilidades, face às vicissitudes do capitalismo e do movimento operário nos anos finais do século e do milênio”. Uma preocupação originada também “do fracasso histórico da tentativa de alcançar – ou ‘construir’ – o socialismo através da estatização dos meios de produção e da instituição do planejamento centralizado da economia”. De um outro modo: A experiência fracassada revitalizou a hipótese de que “o socialismo, enquanto modo de produção, teria de ser desenvolvido ainda sob hegemonia do capitalismo”, posto que “o socialismo sem aspas terá que ser construído pela livre iniciativa dos trabalhadores em competição e contraposição ao modo de produção capitalista dentro de uma mesma formação social.” E advertiu Singer sem apelação: “Organizações como essas (a dos trabalhadores) não podem ser formadas de cima para baixo, por decreto de algum poder pseudo-socialista, desconhecendo os anseios e propósitos dos produtores/consumidores”. E ressaltou: “O desenvolvimento de modos de produção socialista em formações sociais capitalistas já está ocorrendo há mais de 200 anos.” E ainda esbofeteou com maestria os esquerdeiros e esquerdosos corruptos, de sorrisinhos debiloides, de múltiplas alisadas nos bagos dos dirigentes egolátricos e zero-cri (zero criatividade) empreendedora: “A noção de revolução política ofuscou a de revolução social, por causa da tese de que a condição necessária para a conquista do socialismo seria a conquista do poder estatal por forças empenhadas naquele objetivo.”

Nos tempos atuais de despetelhamento na via partidária brasileira, sempre é oportuno explicitar como um dos fatores causais as merdices e canalhices praticadas pelos messiânicos e messiânicas “salvadores(as) da pátria”, fraudadores do erário público travestidos(as) de erradicadores(as) da miséria de milhões.

(Publicada em 10.10.2016, no site do Jornal A Besta Fubana e no www.fernandogoncalves.pro.br)
Fernando Antônio Gonçalves