RECONSTRUÇÃO MULTIDISCIPLINAR


Tenho uma profunda admiração pelo apóstolo São Paulo, ex-Saulo, quando ele confessa, na Carta aos Coríntios: “Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, argumentava como criança; agora que me tornei homem, não procedo mais de forma infantil.” (1Cor 13,11). Um dos maiores perseguidores de cristãos, repentinamente, numa estrada de Damasco, “deixa a ficha cair”, tornando-se o grande bandeirante dos gentios, propagador das Boas Novas anunciadas pelo Homão da Galileia, nosso Irmão Libertador, sempre a lembrar que não permanecessem ignorantes a respeito das coisas do Espírito.

Também um outro Paulo, o Freire, pernambucaníssimo, diferenciava bem transitividade ingênua de transitividade crítica, a primeira sendo característica maior dos mentalmente infantilizados, dos que ainda acreditam em fantasmas e mulas-sem-cabeça, sexta-feira 13, assombrações, maus olhados e outras presepadas. Os segundos, devidamente armados de sólidos argumentos racionais, não sectarizam, tampouco transferem para outrem as consequências dos atos praticados, indevidamente analisados por emocionalismos primários ou impressões familiares de frágil densidade cognitiva.

O acima exposto ficou ainda mais saliente em meu interior quando li o livro Onde a Religião Termina?, Foz de Iguaçu, PR, Editares, 2011, 486 p., escrito pelo ex-sacerdote católico Marcelo da Luz, um crítico do fenômeno religioso após vivência de duas décadas como religioso profissional e sacerdote, graduado nos campos da Filosofia, da Teologia e das Ciências Humanas no Brasil, na Itália e nos Estados Unidos.

No seu bastante erudito livro, o professor Marcelo da Luz, através de fatos vivenciados, experiências pessoais e uma abordagem multidisciplinar (História, Sociologia, Filosofia, Antropologia, Teologia e Conscienciologia) busca analisar algumas questões que ainda são amplamente discutidas nos quatro cantos do mundo por especialistas diversos: por que, em essência, todas as religiões são sectárias?; em que medida a religião causa dependência nos crentes?; quais as estratégias usadas pelos pregadores religiosos para encantar e manipular os ouvintes?; em que sentido o cristianismo está fundado sobre um mito?; qual é a ligação entre religião e violência?; “Deus” existe?

A contracapa esclarece: “o autor expõe as irracionalidades e enganos do cristianismo e de outras tradições religiosas do Planeta. Texto imprescindível para todos os interessados na análise da influência da religião sobre a consciência humana.”

No prefácio, o professor Waldo Vieira, considerado um “despertador de sonos dogmáticos”, especialista em Conscienciologia, definiu Marcelo da Luz como dotado de um portentoso paracérebro, considerando seu livro como um genuíno Tratado da Antirreligião, “constituindo vigorosa autorreciclagem existencial determinada, megagestação consciencial exemplar e o primeiro passo para o competente autorrevezamento multiexistecial.”

Na Introdução, o autor aventa a possibilidade de alguns leitores colocarem em dúvida a sua idoneidade mental e moral para o exercício das funções sacerdotais, diante da avalanche de hediondos escândalos e crimes, acarretando o agravamento da crise na Igreja Católica. Entretanto, as avaliações feitas por educadores e superiores hierárquicos do autor comprovam exatamente o contrário: a maneira de religioso idealista, fiel, responsável e dedicado, caracterizando sua intensa e honesta dedicação à vida consagrada, buscando encontrar pleno cumprimento do sentido da vida. Ele próprio esclarece: “a decisão do autor em deixar a religião, após experimentar profunda crise de crescimento, fundamentou-se na ação livre de quem, após caminhar tenazmente, esgotou uma possibilidade existencial e atingiu novo patamar de entendimento acerca das realidades da consciência e do Universo.”

Com excelente equilíbrio emocional, o professor Marcelo da Luz faz uma tipologia dos dissidentes religiosos: o descontente nostálgico, o reformador e o ressentido. O primeiro identifica aquele que efetiva a ruptura apenas baseada na rejeição ao modo de funcionamento institucional ou em alguma legislação com a qual não pode concordar. Ele sai da corporação, embora continua pensando a partir dela, imaginando o retorno a ela desde que suas necessidades pessoais sejam atendidas. Os reformadores se insurgem contra as disposições vigentes, sem abandonar o sistema, criando alternativas dentro da estrutura, podendo ser divididos em dois grupos: os reformadores internos, quando as reformas são aceitas, e os segundos, quando as suas propostas são refugadas pela comunidade institucional, resultando num conflito e na saída para a formação de novos organismos. O ressentido se desliga apenas fisicamente mas não conseguem se libertar, tornando-se recheado de memórias negativas e amarguras das mais variadas espécies, adotando a lógica da retaliação, sempre buscando causar prejuízos aos seus antigos companheiros. No caso do Marcelo da Luz, ele afirma que seus novos posicionamentos buscam a superação da religiosidade, enquanto etapa transitória no processo evolutivo da vida humana, somente ocorrendo no íntimo da consciência, resultando de um amadurecido discernimento, sem violências nem imposições, em busca de um novo paradigma consciencial, a partir da aplicação do seu princípio da descrença: “Não acredite em nada. Nem mesmo nas ideias defendidas pelo autor deste livro. Nada substitui, leitor ou leitora, a autoexperimentação. Experimente, pesquise, reflita, refute! Tenha suas próprias experiências.”

No Epílogo “Onde a Religião Termina?”, o autor efetiva o resumo histórico de alguns significativos conflitos religiosos: A Primeira Cruzada (1095-1099), A Quarta Cruzada (1202-1204), A Cruzada das Crianças (1212), As Guerras Religiosas Francesas (1562-1598), A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), A revolta chinesa de Taiping (1850-1871) e os atentados terroristas em Nova York, de 11 de setembro de 2001.

Num segundo apêndice, o autor edita a carta aberta enviada à Ordem dos Franciscanos Conventuais, em 30 de setembro de 2004, selando o rompimento com a vida religiosa. E ainda acrescenta uma densa Bibliografia Específica, composta de 571 referências.

Um texto denso. Uma megagestação consciencial bastante significativa.

(Publicado em 21.08.2017 também no site do Jornal da Besta Fubana (www.luizberto.com)
Fernando Antônio Gonçalves