RAÇA PERNAMBUCANA


Vez por outra, deparo-me com uma mente denegrindo o Nordeste, como se por aqui só existissem desqualificados e coitadinhos, sem instrução e de pés no chão. Mas frequentemente me contam histórias espetaculares de feitos nordestinos, das mais diversas escolaridades, raças e gênero. Uma delas foi noticiada pela Folha de São Paulo de 7 de novembro último, na página E5 do Caderno “Ilustrada”. Que me deu um orgulho danado, tornando-me mais nordestino que nunca.

A reportagem faz menção à história do porteiro José Carlos da Silva, 52 anos, um nascido em Carpina, município pernambucano, 65 quilômetros da capital do estado. Sua família tinha cinco filhos. Aos 18 anos, resolveu tentar a vida em São Paulo, onde desembarcou com uma mão na frente e outra atrás, logo arrumando um emprego de faxineiro. No prédio onde trabalha há 14 anos, nos seus dias de folga costuma repetir o mesmo programa. Apanha o metrô na rua da Consolação, salta na estação da Luz e visita o seu paraíso: a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Segundo ele mesmo confessa: “Sou apaixonado por arte e louco por Caravaggio. Vou mais a museus e bibliotecas do que ao cinema, porque é de graça.”

Bastante conhecido na região onde trabalha, Bela Vista, Zé é conhecido pelo seu gosto refinado e pela incrível capacidade de entrar num debate literário. Segundo a reportagem, “nas semanas que antecederam as eleições, defendeu a então candidata Dilma Rousseff com golpes de Machado de Assis”. E ele mesmo confessa: “Depois que você lê Machado de Assis, nunca mais é humilhado. Machado me mostrou toda a hipocrisia do mundo. Todos os preconceitos estão na obra dele. Recito ‘Helena’ de cor e salteado.”

Como lição de vida, José Carlos guarda recordação grata de uma professora primária que sempre lhe recomendava: “Procure sempre conhecimento, meu filho”. E em 2003, leu no jornal que um colecionador de arte tinha pago milhões de dólares por uma tela de Van Gogh. E uma vizinha lhe explicou que havia um curso de história da arte no MASP. Ligou para lá, explicou sua situação financeira e conseguiu uma bolsa de estudo. Passou um ano estudando arte, “melhor ano da minha vida”, segundo ele.

Completou ensino médio no Sesi. Em 2010 fez o Enem e ingressou no curso de turismo. Pretende agora estudar história, embora a inscrição no vestibular custe 10% do seu salário.

Lida a reportagem, orgulhando-me da pernambucanidade raçuda do José Carlos, lembrei-me de um aforismo de um jesuíta espanhol, Balthasar Gracián, escrito em 1647, que proclamava sua fé na trabalhabilidade de todos, cada um sendo autor e ator de sua caminhada: “Ninguém nasce perfeito. Para tornar-se um Ser Humano o mais completo possível, profissional e pessoalmente, cultive o discernimento com maturidade, possua gosto elevado e inteligência aguçada para todas as coisas. Estude muito por meio de muitos, sempre fazendo do conhecimento seu melhor companheiro. Nunca abra a porta para o menor dos males, posto que os demais estão por detrás dele. Não se esquecendo de que até as lebres puxam as barbas de um leão morto, nunca brinque com a sua coragem. Só o verdadeiramente superior vê em dobro. Dizer não é tão importante quanto saber gostar de todas as boas coisas. A compreensão de um amigo vale mais que apenas a boa vontade de muitos. Amigos sensatos afastam as mágoas, os tolos acumulam. Os que mais se orgulham de suas proezas são os que menos têm motivos para tanto. Contente-se em fazer, deixando os comentários para os demais. Um espírito frouxo prejudica muito mais que um corpo fraco. Seja antes de ter.”

Algumas patologias contemporâneas contribuem para a não superação dos sentimentos coitadísticos. As principais são a perda da autoestima, a ausência de um sentimento emulador coletivo e uma desacreditação generalizada, oriundas todas de uma previsibilidade reduzida, quase nula, quando não enganosa, a confundir crise com decadência ou apocalíptico final dos tempos. Tais sintomas favorecem amplamente a reprodução de negativismos virulentos, sectários alguns, que ignoram por completo o esclarecimento feito por John F. Kennedy, ex-presidente dos EEUU: Em chinês, a palavra crise se compõe de dois caracteres: um representando o perigo, outro a oportunidade.

Atualmente, inúmeros profissionais não estão levando na devida conta as mudanças que estão se processando velozmente, achando sempre que tudo está bem, que nada vai acontecer com eles, bastando aplicarem o ensinado nos bancos escolares ou o que foi ouvido dos parentes próximos. Não enxergam que a época do paternalismo já cede espaço a uma era de muita profissionalidade. Em função disso, terminam, então, por fazer um estrago dos diabos em suas carreiras, escondendo o lixo debaixo do tapete ou não percebendo que um pequeno buraco pode afundar um grande navio.

A experiência biológica A Síndrome do Sapo Fervido alertará os desprevenidos – no Nordeste Brasileiro também conhecidos por abilolados – para a premência de uma compreensão mais atilada do que seja trabalhabilidade, oportuníssima numa conjuntura onde a criatividade tornou-se fator indissociável de competência e de compromisso social. A experiência é a seguinte: “Um sapo é colocado num recipiente, com água da sua própria lagoa, ficando estático durante todo o tempo em que a água é aquecida até ferver; o sapo não reage ao aquecimento gradual da temperatura da água, morrendo quando a água principia a ferver; o sapo morre inchadinho e feliz.”

Em função disso, para evitar que fatos desagradáveis aconteçam no caminhar profissional do leitor amigo, recomendo alguns procedimentos comportamentais imprescindíveis, para que sejam evitadas cavilosas repetições de ontens e anteontens que se tornaram definitivamente obsoletos. Eis uma amostra dos mais significativos: Destrua as barreiras da sua mediocridade; Liberte a inteligência, livrando-a de preconceitos e bobajadas; Entenda novos e velhos, posto que muita coisa nova é passageira por excelência; Adquira uma serenidade comportamental; Reconheça-se uma metamorfose ambulante; Tenha princípios, jamais medos e receios; Possua um cuidado extremo com os mimetismos.

E para vencer, a raça pernambucana do José Carlos, um cabra danado de bom!!!
PS Gostaria muito de ver o futuro governador construindo uma rede de bibliotecas públicas século XXI pelos principais municípios pernambucanos. Ampliando um viver cada vez mais “descurralizado”.

(Publicada em 10.11.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves