POR DEBAIXO DOS PANOS
Para os que desejam avaliar a Notificação sobre a obra do jesuíta Jon Sobrino, produzida pela Congregação para a Defesa da Fé, ex-Tribunal da Santa Inquisição, a leitura dos ensaios reunidos pela Comissão Teológica Internacional da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo é um excelente caminho. Organizados por José Maria Vigil e editados sob título Descer da Cruz os Pobres – Cristologia da Libertação, Paulinas, 2007, os trabalhos explicitam os interesses que estão por detrás do documento assinado pelo cardeal William Levada, dos Estados Unidos.
Diante da Notificação, fica-se a imaginar o comportamento de algumas autoridades religiosas de hoje atuando durante a passagem terrestre do Homão de Nazaré, quando expulsou os mercadores no Templo, proclamou a boa nova para todos, desejando misericórdia e não sacrifícios. E mais fez: chamou Pedro de “satanás”, acolheu a súplica da mulher siro-fenícia e ainda disse que “quem não é contra nós está a nosso favor”, rejeitando os que desejavam cercá-lo com exclusividade.
Um outro jesuíta, Victor Codina, de Santa Cruz, Bolívia, narra no livro o que lhe aconteceu num seminário alemão. Perguntado por um estudante germânico por que a Teologia da Libertação não havia nascido numa Alemanha de excelentes faculdades de teologia, ótimos professores e magníficas bibliotecas, respondeu sem pestanejar: – Simplesmente porque lá não havia pobres. Uma resposta apropriada para todos aqueles que pensam como a Notificação, que proclama que “a primeira pobreza dos pobres é não conhecer Cristo”. Como se o problema primeiro do pobre não fosse a fome e as demais condições infra-humanas.
Os autores e o avalista da Notificação seguramente estavam desatentos às palavras do profeta Isaías repetidas pelo Nazareno: “Em vão me adoram; seus ensinamentos não passam de regras ensinadas por homens” (Is 29,13). E não levaram na devida conta a carta de Karl Rahner, escrita poucos dias antes de sua morte e endereçada ao Cardeal de Lima: “Seria deplorável se restringíssemos demasiadamente, através de medidas administrativas, este pluralismo legítimo”
No livro encontramos análises de notáveis brasileiros: Leonardo Boff: “é preciso armar-se de coragem para um novo e surpreendente ensaio de encarnação da fé cristã. É preciso que Cristo fale nossas línguas, se revista de nossa cor, seja celebrado com nossas danças e louvado em nosso corpo”; Marcelo Barros, atestando o reavivamento, na América Latina, das religiões afro-americanas e ameríndias; José Comblin perguntando “por que essa Notificação foi divulgada à opinião pública a poucas semanas da Conferência de Aparecida?”; Ivone Gebara, analisando as Cristologias plurais, indagando “como se pode reduzir a criatividade do amor?”; Eduardo Hoornaert, a reproduzir o filósofo alemão Frege, quando este diz que “um enunciado só tem sentido dentro de seu contexto”; Carlos Mesters, enaltecendo as duas características que marcaram os ensinamentos de Jesus: estar bem atento às coisas da vida e aos problemas do povo. E Alfonso Soares, a reproduzir uma asserção do renomado teólogo Joseph Ratinger – “a doutrina da divindade de Jesus permaneceria intacta se Jesus procedesse de um casal cristão normal” -, imaginando a bronca, se tal frase fosse pronunciada por Jon Sobrino ou um dos seus irmãos latinos. Mesmo porque os pais do Homão jamais poderiam ser cristãos…
A Notificação não respeita os milhões de miseráveis que vegetam na América Latina, tampouco se incomodando com as mortes de Dom Oscar Romero, de Pe. Henrique, de Margarida Alves e de tantos outros que foram assassinados por defenderem a justiça social.
Que os autores e avalista da Notificação possam acatar, sem que interesses outros não-evangélicos prevalesçam, a constatação de Dom Pedro Casaldáliga, um bispo sem enfeites nem barretes purpúreos: “Tudo é relativo, menos Deus e a fome”.