POR AMOR AO RECIFE
Minhas Senhoras, meus Senhores:
Uma aspiração antiga, de ainda meninote, eu a concretizo hoje, muitíssimo grato aos que fazem a Câmara Municipal do Recife, aprovando proposição do vereador André Campos, meu ex-aluno na Faculdade de Administração da Universidade de Pernambuco e por quem nutro uma admiração acima das cores partidárias e das bocas de urna, embora jamais disfarce minha condição de seu propagandista militante.
A partir da generosidade deliberativa desta Casa, que jamais olvidarei, com mais intensidade amarei a capital brasileira dos rios e das pontes, do frevo e do maracatu, de Frei Caneca e de José Mariano, de Joaquim Nabuco e de Oliveira Lima, e também de Paulo Cavalcanti, querido companheiro de caminhada de todos nós, recentemente tornado saudade. Diploma na mão, d’ora por diante chamarei esta cidade de O Meu Recife, não mais invejando quem quer que seja.
Confesso que a vontade de ser “do Recife” nasceu e tomou jeito em terras potiguares, de Câmara Cascudo e Otto Guerra, e alencarinas, do “padim” Cícero e Parsifal Barroso, antes mesmo de para cá me transferir, nos primeiros anos cinqüenta, acompanhando pai, mãe e o mano José Carlos. Um sonho alicerçado através de relatos esporádicos do meu pai, Antônio Carolino Gonçalves, um recifense intrinsecamente bonito, nascido na praça da Casa Forte e aqui espiritualmente hoje espraiado, com as devidas bênçãos do Senhor da História.
Pelas narrativas caseiras daquele que foi o meu melhor amigo, após jantar recolhido e pijamas a postos, me vi iniciado sobre Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; sobre Agamenon Magalhães e os seus anos de Interventoria; sobre Nilo Pereira e a Congregação Mariana do padre Fernandes; sobre Mauro Mota e o seu poema A Tecelã, que emocionou o papa Pio XII; e sobre Mário Melo, seu chefe no Recenseamento de 1940. E também sobre o Colégio Marista e a sua devoção por Maria; sobre a Faculdade de Direito do Recife, com a sua revista Agitação; e sobre Gregório Bezerra, seu instrutor no Tiro de Guerra, por ele considerado um homem de atitudes firmes e de sólidas convicções. Um julgamento totalmente insuspeito, posto que procedente de uma têmpera católica, conservadora embora não reacionária, adepta do Integralismo de Plínio Salgado, nos anos de juventude.
A minha precoce recifensização, senhoras e senhores, também advém dos testemunhos da minha mãe sobre o Teatro de Amadores de Pernambuco, Valdemar de Oliveira sempre se destacando através das inesquecíveis Arsênico e Alfazema e Primerose, e das revistas infantis Terra Adorada, A Princesa Rosalinda e Em Marcha, Brasil. E ainda sobre o footing da juventude, na rua Nova; sobre a rua da Glória e a sorveteria Gemba; sobre os bondes elétricos, os alfenins e as tapiocas molhadas; sobre as retretas e os confetes e serpentinas dos corsos espetaculares dos carnavais desta metrópole, fartamente regados a Irmãos Valença , O teu cabelo não nega, Nelson Ferreira, Dedé e Gostosão, Edgar Morais, A dor de uma saudade, e Capiba, É de amargar, entre tantos outros compositores. E ia muito mais além, o entusiasmo da “velha”, quando os assuntos das conversas familiares giravam sobre a Festa da Mocidade, o cinema Politeama, as procissões de Nossa Senhora do Carmo, as orientações de Ernani Braga e o Conservatório Pernambucano de Música, Ulysses Pernambucano e a Escola Normal, Manoel Bandeira e Ascenso Ferreira.
Também pela gastronomia fui recifensizado desde menino, ao me empanturrar com os quitutes doméstico, um modo peculiar e subconsciente encontrado pela dona da casa de “matar” as saudades da sua cidade. Com alguma periodicidade, a depender sempre de uns mil-réis mais folgados, suspiros, fatias-paridas, cocadas, pés-de-moleque e doce de banana em rodinhas eram caprichosamente postos à disposição, para não deixar ninguém magricela. E só não menciono, agora, os ingredientes da galinha de cabidela, da feijoada e da farofa com carne de sol porque desejo concluir este agradecimento sem mortificar mais ninguém.
Ao chegar, pela vez primeira, ao Recife, à rua de São João, numa manhã de fevereiro de 1952, acolhido, com os meus, na residência de um casal de tios, deparei-me com um palanque armado, perto do gasômetro, às vésperas de um sábado de Zé Pereira. E pelas mãos do tio Jambo, “adotado” de pronto por ele, dada nossa semelhança corporal, ambos gordinhos, daquele palanque assisti, já noite alta do domingo, as evoluções de um clube de carnaval, fenômeno nunca dantes visto por um menino de quase nove anos de idade.
Quem se apresentava era Vassourinhas, do qual sou Sócio Benemérito, graças a uma proposição do pesquisador Evandro Rabelo, um dos maiores estudiosos brasileiros da nossa tradição momesca. Com o seu estandarte majestático e a sua orquestra afinadíssima, Vassourinhas me deixou abobadamente deslumbrado, embora concretamente mais “do Recife”. E os palhaços, as troças e blocos, os pierrôs e as colombinas, os mascarados, os papangus e os ursos se encarregaram de esmerar, naqueles dias de folia, a minha recifensização.
Ainda culturalmente, o Ginásio Independência do professor Romildo, na Estância, o Ginásio Anchieta da dona Candinha e da dona Lia, em Parnamirim, e os livros tomados por empréstimo das estantes da professora Myriam Didier e do seu querido Lauro, na rua Tito Rosas, me auxiliaram sobremaneira. E o Ginásio São Luís , de Ponte d’Uchoa, a rua Vigário Tenório e o coco-malte do bar Galerias, no bairro do Recife – um bairro à época bastante freqüentado, todas as noites, pela descompressão que oferecia aos que lá buscavam sua iniciação de
homem -, e mais a pracinha do Diário de Pernambuco, o Horto de Dois Irmãos, Noite de Blac-Tie, Você Faz o Show e o Buraco de Otília, deram contornos ainda mais níidos ao sonho acalentado desde moleque. Uma aspiração agigantada no Curso Pernambucano do professor Salomão Jaroslavsky, na Universidade Católica de Pernambuco, dos saudosos Rubens Lóscio e Potyguar Matos, e a Faculdade de Ciências Econômicas, a Faculdade do padre Silva, integridade comportamental sem salamaleques tridentinos, perito em anedotas quase de salão que ele era, a comprovar que o hábito nunca fez o monge.
Tampouco, mais adiante, passaram desapercebidas as influências recifenses recebidas do livreiro Aluísio Chagas, da Livraria Editora Nordeste, e do produtor cultural Tarcísio Pereira, da Livro Sete, a nacionalmente conhecida Livro Sete do Guiness Book. Influências que geraram outras tantas, multiplicadas, hoje, pelas amizades virtuais conquistadas na Rede Cidadão, do notável Cláudio Marinho, da Emprel, e das infovias desbravadas através da Elógica, de Belarmino Alcoforado, um empreendedor de primeira grandeza, Clóvis Lacerda, o seu timoneiro mais respeitado, através das quais o mundo inteiro pode apreciar os quadros admiráveis de João Câmara Filho, as oportunas restaurações da rua do Bom Jesus e a oficina de Francisco Brennand, para quem “o processo de criação será sempre um questionamento de elementos imprevistos, ligados a certos fatores obsessivos e à presença de formas obscuras”.
Minhas senhoras e meus senhores:
A cidadania recifense que agora recebo, foi um sonho que não durou três dias, mas foi um sonho lindo, todo encantador, recheado de múltiplos acalentamentos, a partir desta tarde tornado ponto de partida de um caminhar mais solidário com as alegrias e as tristezas desta capital, uma cidade maurícia jamais “mauricinha”, ainda pobre nunca submissa. Um caminhar onde os fatos se foram acumulando, num itinerário repleto de mil convergências, estranhadas apenas pelos que desconhecem que “Deus sempre escreve certo, mesmo que por linhas muito tortas”. Fatos marcantes, todos, não agradáveis alguns, que caldearam a minha recifensidade, agora tornada “de mesmo”, com direito a “oxente”, “pixilinga” e o mais que a cidadania me conceder.
Revelo, para não mais cansar os presentes, apenas uma das convergências: a de, conhecendo A Tecelã de Mauro Mota, do poeta vim a ser seu subordinado no então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, a minha maior universidade, onde o meu primeiro trabalho de pesquisa publicado, Nível de Vida do Trabalhador Rural da Zona da Mata do Estado de Pernambuco, repleto de dados quantitativos que refletiam as condições precárias de sobrevivência dos nossos irmãos do campo, calaram fundo em meu interior de pesquisador iniciante, nunca tecnocrata, até hoje um defensor de uma reforma agrária que erradique a exploração latifúndiária, um genocídio que ainda em nosso território nacional perdura, às vésperas de um terceiro milênio.
Pelas mãos de Mauro Mota, um recifensizado que muito me incentivou profissionalmente, cheguei à Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, uma leitura que alavancou compromissos e perseveranças na direção dos menos favorecidos, hoje emblemados na figura muito amada de Dom Hélder Câmara, nosso arcebispo emérito, também um recifensizado, um dos maiores responsáveis pela minha adesão radicalmente solidária na luta por um Recife menos pobre, um Nordeste menos desigual, um Brasil socialmente mais equilibrado, um Ano 2000 Sem Miséria.
Quando presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, com os bravos Salvador Soler e Gustavo Montenegro na Assessoria Jurídica, mais ampliei o meu amor por esta cidade, consubstanciado, numa das vezes, neste mesmo plenário, quando da aprovação do PREZEIS – Projeto de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social, ocorrida na gestão primeira de Jarbas Vasconcelos, este prefeito hepta-campeão na avaliação popular.
Na Secretaria de Educação, Cultura e Esportes do Estado de Pernambuco, na administração democrática e descentralizada do governador Carlos Wilson, procurei demonstrar com atos concretos, que a valorização do professor é a estratégia política mais eficaz para se construir o mundo do trabalho e da justiça social.
Hoje, senhoras e senhores, integrado como articulista ao Sistema Jornal do Commercio, semanalmente busco transmitir aos seus leitores, um pouco do que se foi em meu interior acumulando através dos quilômetros socialmente já vivenciados, sempre com a consciência de ser um aprendiz de tudo, muito embora sem nunca contemporizar com fingidos e amacacados.
Agradeço a generosidade dos vereadores amigos. Serei, d’ora por diante, muito mais “do Recife”. Valorando as belezas desta cidade, denunciando, quando necessário, as suas mazelas, nunca omisso, jamais desatento, permanentemente amante à moda antiga até o suspiro último.
Hoje, felicíssimo, de braços dados com a Carolina, o Daniel e o Rafael, a minha mãe e o meu irmão, os parentes e os amigos, avivadas as trilhas do meu passado, daqui sairei com uma vontade danada de abraçar meu pai, para dizer-lhe, sempre seu filho, que sou Cidadão Recifense, do Recife do Bar Savoy, dos “trezentos desejos presos e trinta mil sonhos frustrados”, testemunhados por Carlos Pena Filho, o poeta do azul.
Grato lhe serei para todo o sempre, meu caríssimo André Campos, continuando a acreditar firmemente nas palavras do outro André, o do romance A Mãe, de Máximo Gorki:
“Eu sei que virá o tempo em que os homens se admirarão mutuamente, em que cada um será como uma estrela aos olhos dos outros. Haverá na Terra homens livres, homens grandes para a sua liberdade. Cada um deles marchará de peito descoberto, libertado de todo o ódio, e todos ignorarão a maldade”.
Estejam certos, amigos vereadores e demais amigos, que continuarei a travar o bom combate, para a concretização dos sonhos dos dois Andrés, os do meu ex-aluno e os do personagem do romance de Gorki, sonhos que refletem a esperança no triunfo dos que lutam por justiça e paz.
E asseguro aos presentes, com o diploma recebido nesta Casa, que somente deixarei O Meu Recife no último pau-de-arara.
Muito obrigado!
(Agradecimento feito por ocasião da Sessão de entrega do título de Cidadão Recifense, na Câmara Municipal do Recife, em 22 de março de 1996)