PITACOS & DESABAFOS


1. Confesso que às vezes tenho ímpetos de chutar o pau da minha barraca de ser humano comprometido com a mensagem do Homão da Galileia, mandando às favas ideário, brasilidade, nordestinidade, denominações religiosas, vontade de servir ao próximo, fidelidade e uma criticidade que não é às vezes bem vista nesta era hipermoderna, onde a sinceridade se encontra tolhida e recolhida até por alguns dignitários que deveriam ser também paulinamente loucos e escandalosos, deixando os cueiros só para os menos atentos ou ainda mentalmente desajustados. Mas logo volto a querer seguir adiante, pouco me lixando para as conversinhas lamuriosas dar dos frágeis de caráter, principalmente quando releio Harold Kusher, Nilton Bonder, Paulo de Tarso e Rubem Alves, inteligências a serviço do homem todo e de todos os homens, o primeiro sendo autor de uma notável reflexão-vacina: “Se o sentimento de nossa identidade depende da popularidade e da opinião que as outras pessoas têm de nós, estaremos sempre sujeitos a essas outras pessoas. A qualquer momento, elas poderão puxar o tapete sob nossos pés”.

2. Sempre busco definir o ser humano como um ser histórico, situado e datado, muito embora nunca acabado, constituindo-se numa metamorfose ambulante, como dizia o menestrel baiano Raul Seixas. Não é apenas um ser no mundo, mas um ser em permanente interação com os mundos, daqui e do além, modificando e sendo modificado, condutor e conduzido, mutante porque capaz de questionar e ser questionado, histórico porque livre. Daí a minha estupefação quando me deparo com pessoas amorfas, desejando ser bonzinho para com todos, olhos fixos nas vantagens, adepto das pompas bizarras e dos fingimentos porcalhões que escamoteiam os inevitáveis conflitos polissêmicos que emergem numa era de mutações ultrarrápidas. De pouca envergadura crítica, eles não se apercebem do que ensina o Eclesiastes: “Não dê atenção a todas as palavras que o povo diz, caso contrário poderá ouvir o seu próprio servo falando mal de você, pois em seu coração você sabe que muitas vezes você também falou mal de outros”. (Ec,7,21).

3. Usando a linguagem como espelho de sua própria historicidade, o ser humano a utiliza segundo diferenciados graus etários, níveis de renda e de escolaridade. Tal espelho também reflete a sua interação com o seu derredor, muito embora jamais possa retratar sua integral caminhada, posto que a linguagem nunca se estabiliza, dado o surgimento de novos condicionamentos linguísticos, aceleradas mutações cenariais e a emersão de experiências antes nunca havidas nem conhecidas. O próprio rabino Kushner, que perdeu um filho de maneira dolorosa, assegura: “não permita que coisa alguma – seu emprego, seu carro, nem mesmo sua saúde ou sua família – seja muito importante e você se imunizará contra o medo de perdê-la”. E o sinal de amadurecimento se explicita quando abandonamos a obsessão de indagar sobre o que a vida nos reserva e principiamos a refletir o que estamos fazendo da nossa própria vida.

4. Os que se deblatem contra os “critiquentos”, não assimilam que a insistente sinfonia da negação pode se transformar numa degenerativa postura negativista, onde nada presta, nada do passado tem valor, todos buscando agir conforme seus próprios interesses e ambições, devendo-se sempre “levar vantagem em tudo”, num autofágico individualismo que menoscaba a individualidade, reduzindo todos a ninguém, inclusive os que se imaginam bem situados hierarquicamente, posto que sem comandados os comandantes não evoluem, naufragando com muita facilidade no próprio charco por eles criados.

5. O assistencialismo dos comandantes, entendido aqui como uma postura inteligente de manter o colonialismo via gratidão, talvez seja o mais letal dos grandes males contemporâneos, posto que amortece a criticidade, reduzindo-a a níveis não-contagiantes. O ser humano só pode ser entendido como criador dos seus próprios futuros, na medida em que for vacinado contra as promessas mirabolantes dos ansiosos pela manutenção dos seus postos, salários e benefícios outros. De há muito já se percebeu que os mandos econômicos e as posturas anestésicas são apenas esmolas, dessas que “matam de vergonha e viciam o cidadão”.

6. Todo homem consciente, eticamente comprometido com os amanhãs dos mundos, se for o caso, percebe que não é criador do futuro de todos. Sua consciência ressalta que ele é aquele que age à luz de um futuro prometido, que seguramente advirá. A teologia pastoral, integrante viva de uma Igreja que deve ser alavancada como parteira da História, tem como missão basilar, na manutenção da efetividade do querigma, buscar uma nova linguagem, ainda que nunca se distanciando dos contextos diferenciados e muitas vezes opostos. Sem desaprender totalmente a linguagem anterior, porque ainda necessária em inúmeras oportunidades, cabe à Igreja habilitar-se sem demora na apreensibilidade de novas linguagens, erradicando as inadequações que apenas enfastiam e desacreditam, ensejando fundamentalismos que não levam na devida conta a irreversibilidade de uma pós-modernidade.

7. Uma pastoral missionária dotada de capacidade cativadora necessariamente deverá estar eivada de um ecumenismo consolidado numa teologia da paz criativa. E com as seguintes características, segundo o teólogo Hans Küng explicitou num dos seus últimos textos: Pesquisa dos fundamentos teológicos; Questionamento das estruturas de pensamento e comportamento sedimentadas; Captação das diferenças centrais nas religiões e entre as religiões; Exigência de atenta autocrítica e auto-correção de todos os lados; Enxergância dos amanhãs através de análises das forças religiosas do passado; e acumulação de informações bem captadas, antecipando-se aos desafios recíprocos que sempre existirão entre as denominações.

8. No nosso dia-a-dia, a Esperança sendo porta-bandeira indispensável, uma oportuna reflexão foi escrita por Nilton Bonder, rabino da Congregação Judaica do Brasil, no Rio de Janeiro, uma inteligência privilegiada, também engenheiro diplomado pela Universidade de Colúmbia, Estados Unidos: “Para podermos honrar a consciência e a experiência existencial, temos de conhecer a arte de pedir ‘concordata’ para nosso empreendimento na dimensão da consciência. Esta concordata tem como parte de seu objetivo salvaguardar a própria consciência de uma possível falência, que representaria a alienação total. Esta concordata é comumente chamada de entrega”.

(Publicado em 25.06.2018 no site do Jornal da Besta Fubana (www.luizberto.com) e em nosso site www.fernandogoncalves.pro.br)
Fernando Antônio Gonçalves