PESSOA DEBULHADO


A leitura da volumosa e muito bem esmiuçada pesquisa feita pelo pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, que o consumiu por dez longos anos e que agora é tornada pública pela Record sob título Fernando Pessoa – Uma Quase Autobiografia, está a merecer mais que o dobro do elogio recebido por uma outra biografia do poeta luso – Fernando Pessoa Estranho Passageiro – Uma Biografia, de Robert Brechon, Record, 1998 – no final do século passado: “É um trabalho notável por essa capacidade de encontrar e ligar os fios de um pensamento e de uma obra em que os aspectos mais visíveis remetem para o fragmentário e o inacabado”.

Conheço o Zepaulinho desde os tempos de Universidade Católica de Pernambuco, ele brilhante aluno do Curso de Direito, eu persistentemente frequentador de uma graduação em Economia, áreas severamente vigiadas pelos tomadores do poder de então, ele mais jovem que eu e muitos furos acima dos QI acadêmicos da época. Além de mais charmoso e já naqueles tempos culturalmente bem apetrechado.

O site da Livraria Cultura decreve a exaustiva pesquisa do Zepaulinho como “uma obra sobre as muitas personas assumidas pelo poeta português”, onde “procurou revelar com detalhes os heterônimos que habitaram o imaginário e a escrita de Fernando Pessoa, apresentando a produção e as origens de cada um deles”. E mais: “a obra é chamada de ‘quase’ autobiografia pois foram utilizadas centenas de frases e citações do poeta, mas também contém depoimentos de pessoas que conviveram com ele e contribuições do próprio autor. Ao longo de toda a obra, José Paulo Cavalcanti traduz e procura explicar cada expressão portuguesa usada, tanto na obra de Pessoa como em depoimentos ou outros registros”.

Eu imagino como seria um encontro, hoje, do talento pernambucano com o biografado luso, um andeiro de miopia avantajada. Quando o gênio português ratificaria para o pesquisador maurício o que ele, Zepaulinho, já o tinha explicitado sobejamente nas páginas do seu portentoso texto: “o meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto”. E explicaria o já por demais analisado pelo seu biógrafo: “a maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar”. E ouviria Pessoa resposta do Zepaulinho, uma inteligência ouro de lei – sempre incentivada por uma jovem senhora chamada Maria Lectícia, sua musa inspiradora -, respaldada na própria imaginação criativa do novo Camões: “o verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente. Para isso precisa couraçar-se cercando-se de realidades mais próximas de si do que os fatos”.

O poeta parabenizaria efusivamente o Zepaulinho pelo livro sobre sua pessoa, sempre agradecido ao escritor João Gaspar Simões (1903-1983), que o redescobriu nos fins da década de 1920, salvando-o de um esquecimento sem ressurreição, ao escrever Vida e Obra de Fernando Pessoa – História de uma Geração, editado em 1950, muito embora “não há estilo imposto nem método infalível para o biógrafo”.

Imagino-os lamentando, de braços dados, o aguaceiro acontecido sobre um Recife que urge ser melhor estrategicamente administrado, turistando pelos principais recantos culturais da cidade, cada um na sua sexualidade, ratificando dois pensamentos do poeta de Tabacaria, que uma jornalista francesa definiu como “o mais belo escrito do mundo”: “Precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um dependente”; “Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer”.

Os pessoanos buscam assimilar da melhor maneira possível os balizamentos do poeta genial: “Não sejamos sínteses, sejamos soma: a síntese é com Deus. Não compreendemos nada: andamos à escuta”.. “Não tenhas opiniões firmes, nem creias demasiadamente no valor de tuas opiniões” … “Sê tolerante, porque não tens a certeza de nada” … “A futilidade superior nada tem de comum com a leveza de alma. Brincar com ideias difere de não ter ideias: não ter ideias não é ser fútil, é ser parvo”. E que, como ele, também estão “fartos de semideuses” e “os campeões em tudo”!!

Parabéns, Zepaulinho, pelo monumental fruto de muitos anos de levantamentos e análises criteriosos. Permita-me dizer o quanto fraternalmente muito o estimo, mesmo jamais podendo alcançar neuronialmente a imaginação desenvolvida por sua inteligência e a de seu biografado, do qual somos devotos, cujos versos são “a única restança posta / nos capitéis do tempo”, como nos alertou Ricardo Reis, também autor da ode que identifica a lápide em mármore do túmulo do poeta, nos Jerônimos: “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes”.

“O mais do que isto / É Jesus Cristo, / Que nada sabia de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca…”

(Publicada em 25/04/2011, no Portal da Revista ALGOMAIS, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves