PERIPÉCIAS DE UM ABADE


Ainda nos bons sebos europeus pode-se encontrar uma monumental obra intitulada História da Igreja, de autoria do abade François-Timoléon de Choisy (1644-1724), que foi decano da Academia Francesa, à qual integrou por longos 38 anos. São onze volumes de múltiplos detalhes históricos, elucidativos por excelência para quem deseja esmiuçar os ontens da institutição mais poderosa de toda a história da Humanidade.
Com o Abade de Choisy, sua trajetória existencial foi repleta de altos e baixos, salpicos e suspiros, solidões e muito boas companhias, além de duas outras facetas inesquecíveis: a de vestir-se de mulher para abrir porteiras de ovelhas desatentas ou desejosas e uma impulsão irrefreável para os jogos de azar, nos quais perdeu toda a herança dos seus antepassados.
Sentindo chegada sua fase mística, o Abade Choisy efetivou uma viagem de sete meses em direção da Tailândia, onde integrou uma missão diplomática enviada pelo rei Luís XIV, que à época nadava em ouro, prata e riquezas mil. O Abade ainda aprendeu falar português com bastante fluência para os padrões da época, posto que era a língua mais falada no Oriente.
A editora Rocco, mês passado, através de uma tradução cinco estrelas de Leonardo Fróes, tradutor premiado pela Biblioteca Nacional e pela Academia Brasileira de Letras, também laureado com o prêmio Jabuti (Poesia, 1966), traz ao público brasileiro as peripécias do Abade de Choisy vestido de mulher e com identidade feminina, por ele contadas, um estrategista dezoito quilates em promover suas aproximações fantasiadas de mulher com mocinhas ingênuas, objetivando relações carnais mais estreitas, num primoroso billau approach, utilizando aqui a terminologia marqueteira do momento.
O título do livro é por demais convidativo: Memórias do Abade de Choisy vestido de mulher. Com um posfácio do laureado Leonardo Fróes, onde se especula que o Abade do pirulito pra lá de ativo tenha perpetrado suas confidências por volta de 1720, aos 76 anos, quando também escrevia os dois últimos volumes de sua História da Igreja. Com sagacidade, o Abade dava uma no cravo e outra na ferradura, está última já não tão férrea quanto em épocas mais viris.
O Abade de Choisy, personagem da História da França que se valia da tática do pinto adormecido, nasceu em Paris em agosto de 1644, seus pais sendo funcionários da família real. Em setembro de 1640 viera ao mundo Felipe d’Orleans, seu amigo de infância, o irmão de Luís XIV, também submetido a um processo de feminização deliberada, para que se tornassem “amiguinhas íntimas”, jamais sentindo atração pelo poder real, este destinado para os que sabiam pelejar sob paus e pedras.
Com apenas 19 anos, o biografado é nomeado abade de Saint-Seine, um velho mosteiro beneditino situado nas cercanias de Lyon, muito embora desde um ano antes recebia pensão de seis mil libras do arcebispado de Auch, na condição de clérigo da diocese de Paris. Três anos depois, Timoléon conclui o curso de teologia da Sorbonne e dá uma escapadinha até Bordeaux para participar de uma peça teatral, onde fazia o papel de uma donzela, onde, dizem, aconteceu sua pós-graduação lúbrica.
Com nome de madame des Barres adquire, em 1670, o castelo de Crespon, na periferia de Bourges, acontecendo ali, entre junho e julho, os seus torneios de esfrega-esfrega com a mademoiselle de La Grise, uma das mais famosas campeãs de entre-e-sai da região. Volta a se vestir de mulher no faubourg (subúrbio) de Sain-Marceau, assumindo-se como madame de Sancy, sendo nomeado, em 1675, prior da freguesia de Saint-Lô, em Rouen.
Em 1676, o Abade conhece pessoalmente Inocêncio XI, um papa que o povo muito amava porque trabalhava pelos pobres, eliminou o deficit do Vaticano e extirpou o nepotismo, sempre preocupado com a pureza da fé e a moral na Igreja. E em 1687 é eleito para a Academia Francesa de Letras, morrendo em Paris,em 1724, como decano da Academia Francesa.
No livro, confissões enigmáticas: “o jogo, que sempre me perseguiu, curou-me dessa frivolidade por vários anos; mas todas as vezes que me arruinei e quis deixar o jogo, recaí nas minhas velhas fraquezas e voltei a ser mulher”. Diziam, por aquelas bandas, que o jogo preferido do Abade era buraco…
Vale a pena ler o livro do Abade de Choisy para compreender mais densamente porque Dom Hélder Câmara sempre proclamava que a Igreja era santa e pecadora. Com seus padres abnegados, abades meninas e bispos psicopatas.