PARA VIVER SADIO


Descalça e sempre sujinha, eu a via diariamente no parque situado ao lado da minha casa. Sem falar com ninguém, a garotinha nada pedia, tampouco sorria. Muitos que por ela cruzavam sequer lhe dirigiam um olhar ou um sorriso. Inclusive eu, que jamais lhe dera um mínimo de atenção, por puro egoísmo.
Certo dia, espiei a garota empoleirada no banco da praça, o olhar fixado no infinito, a refletir desconcertante tristeza. Não reprimindo a curiosidade, dela me aproximei, desconfiado das intenções de uma menina largada num logradouro público, cabelos desgrenhados, o vestuário a implorar uma lavagem das boas. Com a violência imperando por todos os setores e a impunidade campeando nas metrópoles, aquela criança vadia merecia uma atenção redobrada.
Ao me aproximar, um detalhe da menina saltou-me aos olhos: sua descomunal corcunda. Compreendi a sua tristeza e o seu isolamento. Quase ao seu lado, vi seus olhos deliberadamente procurarem o chão, a vermelhidão se estampando nas suas bochechas. E observei com maior nitidez o contorno das suas costas, recordando o Quasímodo, representado pelo Anthony Quinn, em O Corcunda de Notre-Dame, a italiana Gina Lolobrígida no papel da gostosona, que deslumbrava os adolescentes que nem eu, sem silicone em parte alguma.
Esforçando-me para demonstrar boa vontade e dizendo que estava ali para ajudar e conversar, sentei-me no banco e lhe remeti um esforçado “olá”. A garotinha balbuciou um “oi” quase inaudível, após fixar intensamente meus olhos.
Ao meu segundo sorriso ainda meio sem graça, ela timidamente retribuiu. E principiamos um papo meio sem pé nem cabeça, o nexo ficando por conta do acaso. Depois de uns instantes, criei coragem e perguntei porque ela estava tão tristinha. Ela respondeu, sem alegria alguma: “Porque eu sou diferente”.
Tentando refazer-me de um “eu sei” pronunciado fora de hora, remendei: “Menininha, você me lembra um anjo doce e inocente”. Arregalando os olhinhos, sorriu levemente, seu corpinho tornando-se mais espigado: “De verdade?”, indagou. “Sim, querida, você é um pequeno anjo da guarda mandado por Deus para olhar todas as pessoas que passam por aqui”. Ela balançou a cabecinha, pronunciou um “sim” revestido de certeza e piscando mais rapidamente os olhinhos azuis arrematou, me nocauteando: “Eu sou seu anjo da guarda, amigo”.
Totalmente aparvalhado, mudinho da silva, imaginei-me num pesadelo. Ela continuou com exemplar maturidade: “Quando você deixou de pensar unicamente em você, meu trabalho aqui foi concluído”. Ainda sem fôlego levantei-me surpreso do banco da praça: “Espere, e por que então ninguém parou para ajudar um anjo?” A resposta da maltrapilha me fez prostrar de joelhos: “Porque a única pessoa que me via neste jardim era você”. E num passe de mágica, desapareceu por completo.
A partir daquela tarde, minha vida transformou-se por inteiro. E agora revelo aos meus amigos leitores: quando você pensa que está completamente só, lembre-se que um anjo está tomando conta de você, mesmo que você o relegue, deixando-o maltrapilho.
Todos nós precisamos de alguém. Cada um dos nossos verdadeiros amigos é um anjo em sua própria maneira de ser e de agir.