PARA QUEM TEM CORAGEM DE MUDAR


Para quem ainda desconhece descobertas religiosas recentes, é bom recordar que, em 1945, um camponês árabe fez ocasionalmente, no Alto Egito, uma extraordinária descoberta arqueológica. Entretanto, inúmeros boatos obscureceram o feito, muito embora, trinta anos mais tarde, o seu descobridor, Muhammad ‘Ali al-Salmmãn, tenha revelado como tudo aconteceu. Entre os texto encontrados, os chamados evangelhos gnósticos. Um deles, o de Tomé.

No século segundo da era cristã, o então bispo de Alexandria, ciente do seu papel de mantenedor da ortodoxia eclesiástica que já se instalava em seus domínios, determinou a destruição dos documentos tidos como heréticos. Inclusive os “contaminados” pelo Gnosticismo, um movimento que favorecia uma criticidade libertadora embasada no misticismo e na especulação filosófica.

Alguns monges, entretanto, mantiveram inúmeros documentos sob sete chaves, terminando por enterrá-los numa área pouco habitada, num grande jarro de argila, somente descoberto em 1945, no Egito. Continham papiros datados dos primórdios do Cristianismo e redigidos para servir de testemunhas de acontecimentos pretéritos.

O achado é composto de 12 códices, mais um décimo terceiro incompleto, além de 52 outros tratados, sendo o conjunto mundialmente conhecido como Biblioteca de Nag Hammadi, cuja versão inglesa teve primeira edição em 1977. Em 1996, uma nova edição inglesa foi publicada, amplamente revisada, subsidiada pelas recentes pesquisas científicas e arqueológicas.

Recentemente, a editora brasileira Madras, São Paulo, lançou a tradução integral daquele achado, com uma Introdução de James M. Robinson, para quem “uma revolução agressiva não é o que se busca, mas sim uma retirada do nosso envolvimento na contaminação que destrói a clareza da visão”. Sempre a fincar novas raízes interpretativas no já criteriosamente distanciado do joio.

Como em todo movimento, o pensar cristão diferente incomoda bastante e é muito temido pelos que consideram a continuidade e a estabilidade como alicerces de uma trajetória sem contestação. Ainda que situada, numa contramão nem sempre inconsciente, num sentido oposto à mensagem original pregada pelo Judeu de Nazaré, assassinado no madeiro por sua intrepidez evolucionária.

Os incontáveis ramos do Cristianismo, subdivisões criadas tão logo concluídos os quarenta dias do Ressurreto entre nós, em sua maioria emergiram por interesses financeiros, ânsias de poder, fanatismos idiossincráticos, busca de novos nichos evangelizadores e interesse em manipular o inconsciente coletivo de uma área, entre outras intenções menos notórias. Como as que entrechocaram João e Tomé, Pedro e Paulo, e Paulo e Barnabé. Para não se falar das infâmias levantadas contra Maria de Magdala, mais conhecida como Madalena. Além das atrocidades praticadas com os que não seguiam a cartilha imposta pela maioria.
Aplausos para o Mahatma Gandhi: “Creio que, se pudéssemos ler as escrituras das diversas religiões, abraçando, cada vez, o ponto de partida de seus respectivos adeptos, perceberíamos que elas são idênticas, na base, e se completam maravilhosamente”. Um pensar que, seguramente, deixaria muitos com olhares arregalados, com uma vontade danada de também colocar Gandhi no madeiro, entre dois ladrões, se a época possibilitasse. Ou se a Opus Dei ainda fosse possuidora de instrumentos de fácil eliminaão.

Sempre estarão, os mais clarividentes, buscando erigir uma binoculidade diferente, numa transcendentalidade com o Superior situada acima das denominações religiosas. Como cristão, também descendente de Abraão, Isaac e Jacó, aprendiz da Doutrina Espírita, complementam-me, continuadamente e para o alto, os ensinamentos daqueles que pregam o direito de todos os seres humanos a uma existência abundante, material e espiritualmente, sob o signo do Amor, como muito bem estão situadas as análises feitas pelo bispo anglicano aposentado John Shelby Spong, em seu texto Um Novo Cristianismo para um Novo Mundo – a Fé Além dos Dogmas, recentemente lançado em língua portuguesa pela editora Verus. Uma reflexão de gigante, para quem não deseja tornar-se cristãmente pigmeu.
Entre o status quo atual da quase totalidade das denominações cristãs e os ensinamentos do Judeu Nazareno, um fosso se amplia a cada novo amanhecer, infelicitando muitos, desanimando outros tantos, alienando um bom bocado. Embora ampliando, em inúmeros, uma vontade de centuplicar as reflexões através de debates exaustivos com todas as religiões do planeta, fazendo agigantar a tolerância e a compreensão pelo pensar e agir alheios, sem moralismos nem puritanismos, ninguém se arvorando de juízes ou sósias de Deus.
Uma das autoras consideradas clássicas pelos críticos literários e estudiosos da Bíblia, Elaine Pagels é autora de Os Evangelhos Gnósticos, RJ, Objetiva, 2006, 246 p., um estudo brilhante e surpreendente em suas conclusões. A professora Pagels participou do grupo que estudou os rolos encontrados em Nag Hammadi, escrevendo seu livro especialmente para os leigos, tendo sido ele considerado um dos 100 melhores livros do século XX. No livro, ela argumenta que a Igreja cristã foi fundada em uma sociedade que expunha inúmeros pontos-de-vista contraditórios. O gnosticismo era um movimento não muito coerente e havia algumas áreas em desacordo. O gnosticismo atraiu as mulheres em particular devido à sua perspectiva igualitária que permitia a sua participação em rituais sagrados.
Num livro recente, O Evangelho de Tomé – O Elo Perdido, de José Lázaro Boberg, Santa Luzia, MG, Editora Cristo Consolador, 2011, 266 p., mostra como os 114 logions (dizeres) de Jesus são diferentes dos canônicos, sem os acréscimos que nos evangelhos foram introduzidos. O livro de Boberg ressalta as origens do Cristianismo, desmistificando algumas “verdades” impostas à Humanidade até os anos recentes. Uma análise que reata os elos perdidos entre os ensinamentos do Mestre Nazareno e as versões oficiais impostas desde Constantino. Aprimorando segundo o logion 2 do Evangelho de Tomé: Jesus disse: “Deixai aquele que busca continuar buscando até que encontre. Quando encontrar, se tornará aflito. Quando se tornar aflito, será surpreendido e reinará acima de Tudo.”

(Publicado em 29.05.2017 no site do Jornal da Besta Fubana (www.luizberto.com) e em fernandogoncalves.pro.br.)