O ESCÂNDALO DA PEDOFILIA


Editorial da revista italiana Il Regno, dos padres dehonianos, maio de 2010

A Igreja Católica se encontra diante de uma das crises mais profundas da sua história. E está abalada. O Papa Bento XVI, na sua recente Carta Pastoral aos Católicos Irlandeses, falou de obscurecimento da luz do Evangelho. Parece tomar forma a afirmação de Jesus referida por Mateus: “O Reino do Deus sofre violência, e são os violentos que procuram tomá-lo.” (Mt 11,12).

O escândalo surgiu tarde. Antes, o Canadá, na metade dos anos 80, depois os Estados Unidos, em seguida a Áustria, a Austrália, a Bélgica, a Inglaterra, a França, a Irlanda, a Suíça, a Alemanha, a Holanda. Na Itália, segundo a Conferência dos Bispos italianos, os casos de violência por parte de sacerdotes são uma centena.

O fenômeno é relevante na sua dimensão quantitativa (os dados não são precisos, mas trata-se de diversas centenas de casos, por exemplo nos EUA e na Irlanda, e de muitas dezenas nos outros países até aqui envolvidos). Ele não parece estar distribuído de forma homogênea em todos os países de todos os continentes (por isso, reflete os diversos ambientes sociais e o desenvolvimento da dignidade, dos direitos e da tutela da infância nas diversas culturas). Porém, está espalhado no arco temporal: as investigações eclesiásticas e civis documentam um fenômeno que teria o seu pico nas décadas de 50-70, mas isso depende também do fato de que, muitas vezes, as vítimas pedem ou aceitam falar só na idade adulta, e surgem episódios que ocorreram também muitos anos antes. O fenômeno, enfim, está ligado a sistemas fechados ou a lugares onde a perversão tem oportunidade para se manifestar por meio de uma relação de poder fortemente desequilibrada (seminários, colégios, institutos religiosos, estruturas de ensino, paróquias).

O fato de o muro de silêncio ter sido derrubado pela mídia e, nos EUA, pelo lobby dos advogados – que levaram algumas dioceses à falência – determinou uma dinâmica institucionalizada e contrapositiva do confronto público e inicialmente uma errada reação defensiva da instituição eclesiástica. E isso a despeito das vítimas e da própria Igreja. O primeiro relatório publicado por uma Conferência dos Bispos, a canadense, já reconhecia isso em 1987: “O campo ideal para o desenvolvimento e a repetição das violências sexuais sobre menores é um contexto geral de conspiração do silêncio, por temor do escândalo e das consideráveis repercussões sobre as instituições direta ou indiretamente envolvidas”. O silêncio é o contexto ideal em que se produzem e se reproduzem os crimes, mas é também a prisão das vítimas.

O silêncio agiu também no sentido de retardar uma adequada conscientização geral do fenômeno na Igreja. Algumas Igrejas reagiram de modo mais rápido e de maneira mais adequada do que as outras. A Igreja norte-americana e a canadense são as que mais trabalharam a respeito, até levar a Santa Sé e João Paulo II a reescrever as normas disciplinares e a publicar em 2002 a carta apostólica “Sacramentorum sanctitatis tutela”. Entre 2001 e 2003, se atesta a maior parte dos documentos oficiais das outras Igrejas envolvidas.

A dinâmica da relação com a mídia desempenhou um papel relevante no processo de institucionalização do confronto. A mídia pensa a si mesmo como uma instituição da verdade. Desejam exercer um magistério da verdade, embora o sensacionalismo frequentemente faça com que as acusações sejam sumárias, formuladas com escasso respeito pela dignidade da pessoa, tanto da vítima quanto do suposto culpado. É preciso lembrar como, entre as vítimas da mídia, houve também eclesiásticos inocentes. Basta mencionar nos EUA o caso do cardeal Bernardin e, na Austrália, o do cardeal Pell.

A mídia assume, em um caso como este, os mesmos critérios, a mesma severidade com a qual a Igreja, em outras situações, pareceu apresentar suas próprias convicções morais. Principalmente com referência à sexualidade. Descobrir que, dentro da Igreja, há espaço para práticas que ela condena exteriormente torna-se fácil motivo de ataque. E é inevitável que justamente a Igreja se questione sobre sua credibilidade. Imaginar que essas reações constituam um complô é enganoso. Um complô pressupõe um comando unitário, homogêneo. E isso é estruturalmente impossível para o sistema midiático.

Porém, houve correntes de pensamento e também grupos de poder que, nos diversos países, diante de uma crise como essa, usaram a mídia para sua própria luta de deslegitimação da Igreja Católica, ou também só para buscar reduzir sua influência.

Mas assim como não tem sentido falar de complô, também não tem eficácia a condenação da mídia. É melhor conhecer suas regras e levá-las em consideração. Mesmo que diante de uma crise tão radical não baste nem saber comunicar. Certamente, teriam sido evitados os deslizes que alguns cardeais e pregadores fizeram chamando em causa Pio XII, o antissemitismo, a homossexualidade, o desvio laxista do Concílio e fofocas. Palavras muitas vezes pronunciadas na presença do Papa, em contextos litúrgicos ou de oração. Palavras pronunciadas pelos diversos protagonistas mais para destacar sua própria proximidade pessoal ao Papa, a sua própria distância das responsabilidades decisórias ou sua própria capacidade mais preparada para reagir ao xeque-mate com relação ao pessoal atualmente em serviço, evidentemente considerado inadequado.

Nesse sentido, é ingeneroso acusar a Sala de Imprensa da Santa Sé, que se viu administrando posteriormente as diversas externações. O conjunto nos mostra uma Igreja que, em algumas das suas autoridades, evidentemente ainda não entendeu o porte do fenômeno.

Diante da dureza da mídia, assumiu-se a visão justa das coisas, ou melhor, o desarme da Igreja, o seu ser sempre confiada ao Senhor. Mas há uma questão fundamental ulterior que o escândalo em curso levanta. E é a de caráter antropológico.

Ela deriva, em primeiro lugar, da relação entre Igreja e sexualidade. Atalhos fáceis como o que relaciona a questão do celibato com o da pedofilia não servem. A questão do celibato, assim como o da presença da mulher na Igreja, deve ser enfrentado, mas em um contexto eclesiológico. Bastaria, além disso, citar os numerosos casos de violência entre os muros domésticos com relação a isso. Assim como é imprópria a relação entre homossexualidade e pedofilia. A pedofilia é uma patologia grave, a homossexualidade não é uma doença. Aqui, a questão é a relação entre Igreja e sexualidade. A ligação estruturante entre sexualidade e definição da identidade pessoal diz respeito ao humano, à sua corporeidade e à sua relação. Não podemos reduzir a sexualidade à genitalidade. Por outro lado, a sexualidade é tão fundamental na definição da nossa personalidade, que ela não só é o ápice positivo da experiência do humano, do seu doar-se solidário, mas também está sempre exposta à alienação e à violência, a ser usada como mercadoria ou como instrumento de domínio.

A questão nos remete à pergunta antropológica por excelência evocada pelo Salmo 8: “O que é o homem?”. O que é o homem se nele coabitam tais pulsões que podem conduzi-lo à perversão de si mesmo; se ele é tão frágil e exposto ao ambiente, tão condicionado por aquilo que o precedeu e por aquilo que viveu pessoalmente, ao ponto de poder ser até determinado por isso? Em uma tal pergunta encontra lugar a irrenunciabilidade da esfera espiritual ligada ao pecado.

O escândalo da pedofilia e, em geral, das violências sexuais por parte de membros eclesiásticos se configura como uma chaga no corpo da Igreja. Hoje, a firmeza do Papa e da Igreja está fora de discussão; os encobrimentos são denunciados; as penas canônicas e o recurso aos tribunais civis, garantidos; a gravidade do mal é evidenciada e não atenuada; a violência é definida como “pecado grave”, “crime abominável”. A crise também tornou a Igreja mais humilde.

Mas o escândalo grave não se refere só à manifestação de um crime tão odioso no interior da Igreja, mas também diz respeito ao fato de que a Igreja, em diversos dos seus pastores, se comportou com relação a isso como uma casta. A primeira reação foi a de proteger a instituição eclesiástica do escândalo e não de se preocupar com o escândalo por causa das vítimas. Os crimes cometidos só podem ficar sob a responsabilidade de quem os perpetrou. Mas a cortina de silêncio para evitar que o escândalo estourasse é responsabilidade da Igreja.

Isso, evidentemente, não retira nada da gravidade do fato de que um eclesiástico (seja padre ou religioso) tenha traído a relação de confiança entre ele e um “pequeno”, a tenha pervertido até o ponto de ter violentado sua alma. Mas, em um plano diferente, há também a gravidade do fato de que se tenha pensado imediatamente a partir da proteção da instituição, o que significa infligir uma segunda violência sobre a vítima. Se um membro da instituição comete um grave delito que difama sobretudo a instituição – pensou-se –, então deve-se reagir para proteger a instituição.

Primeiro com o silêncio, hoje com uma forte operação de verdade. Verdadeiramente, devemos defender a honra da Igreja, a sua credibilidade enquanto instituição? Não era e não é esse o ponto. O ponto é que as vítimas são Igreja. Igual ou mais do que o carnífice.

Foi e é preciso reconhecer imediatamente o primado das vítimas. Só uma instituição que nunca aceitou intimamente o Vaticano II pode ter reagido sem reconhecer a vítima como parte do seu próprio corpo, do corpo do povo de Deus, e ter reagido com espírito de corpo com relação à sua própria componente clerical. Só a concepção da Igreja como povo de Deus poderia reconhecer as vítimas e o seu direito à verdade, sem temores, já que essa é a justiça que se deve às vítimas.

Essa dimensão interior da Igreja pode permitir que se enfrente a questão do pecado e da conversão da Igreja, da presença do mal em seu interior, já que a Igreja não está separada da vida e do comportamento dos seus membros.

Foi e é preciso se colocar, em primeiro lugar, do lado das vítimas também em sentido teológico, não só eclesiológico. De quem é Deus? De quem é o Deus que a Igreja (não só instituição, mas também povo de Deus) anuncia? Deus é das vítimas. Deus está nas vítimas. Lá, ele se fez sentir. Lá, a Igreja pode vê-lo de maneira privilegiada, já que lá ele sempre manifesta o seu Espírito (cf. Mt 25).

De outra forma, não bastarão as palavras de condenação, a execração e o desprezo. Tudo isso será metabolizado e secularizado, assim como uma instituição que perde o sentido do primado de Deus. Bastará só um novo caso, e tudo recomeça.

Fonte: Instituto Humanitas UNISINOS