O DOM DA VERGONHA
“Há uma experiência de vergonha que aprofunda as nossas relações com o ‘eu’, com os outros e com o sagrado. Essa vergonha indica que transgredimos, nos instrui a fazer correções e nos alerta a nos abstermos de comportamentos que levam ao aprofundamento da vergonha, com a sua concomitante fragmentação de nossas psiques, almas e conexões com os outros.”
Essa é a opinião de Mary Gail Frawley-O’Dea, psicóloga clínica norte-americana, a única profissional de saúde mental que discursou na Conferência dos Bispos dos EUA sobre a crise dos abusos sexuais em seu encontro de Dallas em 2002. Ela também falou, como clínica, sobre os abusos sexuais à Conferência dos Superiores Gerais, nesse mesmo ano. Frawley-O’Dea é co-autora de “Treating the Adult Survivor of Childhood Sexual Abuse” [Tratando sobreviventes adultos de abuso sexual na infância] e co-editora de “Predatory Priests, Silenced Victims” [Padres predadores, vítimas silenciadas].
O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 10-05-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O padre jesuíta James Martin sugere, no jornal Huffington Post, que a hierarquia da Igreja, do Papa para baixo, fracassou amplamente em fazer penitência do seu papel na crise dos abusos sexuais em curso implacável. Essa omissão é um grave desvio do próprio paradigma da Igreja de penitência e restauração – o sacramento da reconciliação –, que requer que o penitente repare aqueles que foram prejudicados e a comunidade em geral. A recusa categórica de acolher a esperança que acompanha a vergonha pode estar em ação nessa ausência pastoral.
A vergonha é algo enganador. A vergonha tem a ver com o nosso ser essencial, não apenas com algo que fizemos e que agora nos arrependemos. Este último evoca a culpa, uma emoção facilmente enfrentável em comparação com a vergonha. A vergonha tem a ver com o que somos, não apenas com o que fizemos. Comumente, é um estado emocional, físico e espiritual profundamente desestabilizante. Ficamos vermelhos, nos sentimos mal do estômago e de espírito, ficamos com medo e queremos nos esconder. Grande parte disso pode anular o crescimento, a criatividade e a disponibilidade relacional com os outros. Quando a vergonha diminui, não podemos mais olhar para nós mesmos ou para nossas comunidades nos olhos. Estamos sozinhos. Muitos sobreviventes de abusos sexuais, de fato, sofrem por causa desse fardo de uma vergonha muitas vezes autodestrutiva e sempre isoladora que, a princípio, eles nunca deveriam carregar.
Ao mesmo tempo, há uma experiência de vergonha que aprofunda as nossas relações com o “eu”, com os outros e com o sagrado. Essa vergonha indica que transgredimos, nos instrui a fazer correções e nos alerta a nos abstermos de comportamentos que levam ao aprofundamento da vergonha, com a sua concomitante fragmentação de nossas psiques, almas e conexões com os outros. O lorde Alfred Douglas capta essa esperança incrustada nessa vergonha:
Eu sou vergonha que caminha com Amor, [I am shame that walks with Love,]
Eu sou o mais sábio para tornar os lábios e membros frios em fogo; [I am most wise to turn cold lips and limbs to fire;]
Por isso, discerne e vê meu encanto [Therefore discern and see my loveliness]
E louva o meu nome. [And praise my name.]
Embora por causa do intenso desconforto físico, emocional e espiritual que acompanha até mesmo a vergonha criativa seja tentador se defender contra o reconhecimento consciente da experiência, infelizmente também se evita a possibilidade de redenção que está de mãos dadas com a vergonha. Até o momento em que o Papa Bento XVI tranquilizou os malteses com relação à vergonha da Igreja por causa dos abusos sexuais, a hierarquia pareceu ter tentado manter a vergonha de lado. Por outro lado, muitos bispos e outras autoridades da Igreja projetaram o que deveria ser a sua própria vergonha sobre os outros – mídia, advogados das vítimas, terapeutas, anticatólicos –, razão pela qual a Igreja, então, se declarou vitimizada. Os opressores experimentam subjetivamente a si mesmos como vítimas e, puf!, a necessidade de penitência evapora.
Enquanto muitas pessoas justificadamente gostariam de ver cabeças eclesiásticas rolando, com bispos demitidos por seu encobrimento da exploração sexual dos jovens na Igreja, essa pode ser a saída mais fácil. Os bispos vão e, com eles, vai talvez a vergonha que é mais bem convidada nos salões do Vaticano e nas cortes de justiça de todo o mundo. Se, por um lado, Bento XVI está verdadeiramente querendo levar seus bispos a encontros criativos com a vergonha, atos significativos de arrependimento público e pastoral contínuo se tornam mais facilmente imagináveis.
E se os bispos de todo o mundo substituíssem as cruzes peitorais por pedras de moinho modeladas de forma a serem suficientemente pesadas para lembrar a esses homens o sofrimento que eles e seus co-irmãos se tornaram cegos para ver? (Desviar o olhar é uma das formas de recusar o dom da vergonha). Ao serem usadas publicamente, elas também serviriam como ícones de lembrança para outros padres e católicos que devem permanecer vigilantes para manter a si mesmos e uns aos outros responsáveis pela segurança das crianças na Igreja.
E se os membros da hierarquia saíssem de seus escritórios e passassem um tempo, todos os meses, nas cozinhas dos sobreviventes e de suas famílias, ouvindo abundantemente as suas histórias e pedindo desculpas a essas pessoas de Deus? E se visitassem as famílias de cada vítima de sua diocese que cometeu suicídio e de cada vítima que está na prisão ou na reabilitação – e se desculpasse em seu nome e no nome de todos os católicos? E se visitassem os juízes, os advogados das vítimas, o procurador geral, os procuradores distritais e os membros do juri popular, para ouvir com plenitude as perspectivas daqueles que viram os abusos sexuais de dentro da Igreja a partir de outros ângulos?
E se os bispos, vestidos de saco, dedicassem todas as sextas-feiras para acompanhar a Via Sacra em honra às vítimas, convidando elas mesmas e suas famílias a estarem presentes, caso ainda consigam aguentar o fato de entrar em uma igreja ou de estar com um clérigo novamente?
A lista continua mais e mais, limitada apenas pela boa vontade da hierarquia de redigi-la e de decretar os seus itens.
Bento XVI e os seus bispos precisam deixar suas cabeças caírem de vergonha. Depois, precisam levantá-las, para humildemente verem o povo de Deus nos olhos, enquanto entram em comunidade por meio de atos sinceros de arrependimento público, agora e ao longo dos tempo.
Mary Gail Frawley-O’Dea, psicóloga clínica
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos, RS