O DESAFIO DE SER CRISTÃO


“A perda de autoridade e de confiança na hierarquia, justamente no centro do povo de Deus eclesialmente ativo e comprometido, é dolorosa para todos. Essas crises são, porém, uma ocasião oportuna para tomar consciência de como ser-cristão e ser-Igreja estão estritamente entrelaçados um ao outro.”
Essa é a opinião de Johannes Röser, em editorial para a revista católica alemã, com orientação ecumênica, Christ in der Gegenwart, da editora Herder, de Freiburg. Röser é teólogo que estudou nas universidades de Freiburg eTübingen, na Alemanha. O texto foi também publicado na seção Teologi@Internet, do sítio da Editora Queriniana, nº. 164, 30-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto:
Sobre um ponto, neste momento, tanto os católicos tradicionalmente conservadores quanto os progressistas estão quase de acordo: a nossa comunidade de fé está vivendo uma das piores crises de confiança da história recente. Os casos de abusos sexuais de menores por obra de religiosos, que vieram à luz nas últimas semanas, mas que remontam certamente há décadas, danificaram em muitos fiéis a confiança na Igreja.
A medida do suportável parece superada. Não se pensava ser possível, além disso, que muitos bispos, até nos níveis mais altos de direção da Igreja universal, falhassem em seu dever de supervisão, contra o próprio alto ethos e contra a exigência de verdade, desprezando assim tão miseramente a sua própria função. Tudo isso manifesta mais falta de direção do que de autoridade.
A Igreja, porém, é a Igreja. Justamente por essa razão, ela é julgada severamente segundo os mais elevados critérios do mundo, principalmente onde, nela mesma, as coisas não podem ocorrer como ocorrem no mundo. Sobre isso, ninguém pode se admirar e se lamentar. Mesmo que esses graves crimes cometidos nas comunidades de fé, comparados às dimensões muito mais terrificantes que alcançam na sociedade secular, estejam na ordem de um por mil, isso não consola. O “rebanho” – para ficar na imagem – deve poder se confiar aos seus “pastores”. O episódio é ainda mais tremendo pelo fato de que esse desvio não se refere às “ovelhas”, mas sim aos “pastores”. Embora a maior parte deles não exerça mais o ministério, isso terá consequências ainda a longo prazo.
A isso se acrescentam, já há muito tempo, irritações que se devem ao acelerado curso restaurador da Igreja depois do Concílio Vaticano II. Apesar das garantias em sentido contrário, muitos pronunciamentos e decisões individuais indicam essa tendência.
O equilíbrio entre solicitude para a tradição e coragem das reformas se inverteu. Como se sai dessa opressora estagnação, de modo que a reforma da fé e a reforma da Igreja tornem a se fecundar reciprocamente? Uma coisa é clara: para apressar a situação, os bispos agora, assim como Roma, devem dar sinais unívocos de natureza progressista. Isso poderia se mostrar no fato de que na pastoral, na estrutura da Igreja e no ecumenismo se realizem finalmente as inovações que o povo eclesial, em grande maioria, pede há muito tempo e que há meio século teólogos significativos como Karl Rahner, Hans Küng e muitos outros – certamente com acentos diferentes – puseram no centro das discussões, fazendo com que se tornassem temas de muitos sínodos regionais.
Continuar ignorando essas propostas e o desejo de importantes assembleias, elaboradas com o consenso geral, e fazer como se não fosse preciso buscar um acordo em nível de Igreja universal já não é bom. Então, podemos nos perguntar se, por exemplo, para os sínodos romanos dos bispos foram escolhidos, talvez muito unilateralmente, os representantes errados ou se até os bispos foram nomeados dispensando completamente as necessidades do povo de Deus e sem ter consciência delas.
Uma ruptura de novo tipo
Igualmente fatal é o fato de que na vida sacramental e na pregação das comunidades eclesiais se continue agindo de rotina, fazendo simplesmente o que se fez até hoje, como se a experiência da demitização, que sacudiu mundos inteiros de fé, as descobertas impressionantes das ciências naturais e os conhecimentos histórico-críticos, por exemplo na interpretação da Bíblia, não tivessem ocorrido.
Aqui nascem os maiores problemas religiosos atuais. A perda de confiança também acelera depois a perda de fé. Se até 90% dos batizados em nível mundial não buscam mais nenhum contato com a prática religiosa, se deixam perder tanto a vida litúrgica quanto a piedade privada e uma correspondente educação dos filhos, então isso tem a ver, com efeito, com uma ruptura da Igreja de tipo novo.
O presidente do comitê central dos católicos alemães, Alois Glück, declarou que, em definitivo, são necessários “debates abertos, honestos e livres de tabus” sobre como a Igreja pode se renovar radicalmente.
Hans Küng: carta aos bispos
Hans Küng também tomou a palavra com uma carta aberta aos bispos da Igreja Católica mundial. O apelo foi publicado por muitos jornais internacionais importantes, por exemplo pelo Neue Zürcher Zeitung e pelo Süddeutsche Zeitung [e na Itália pelo La Repubblica e na Espanha pelo El País.
Na primeira parte da carta, Küng deplora, de um modo já conhecido, decisões erradas e impedimentos. Olhando para o atual pontífice, cinco anos depois da sua eleição a Papa, o teólogo de Tübingen, estimado em todo o mundo, observa: Bento XVI cumpriu com zelo os compromissos cotidianos de Papa e nos deu encíclicas úteis. “Mas, no tocante aos grandes desafios de nosso tempo, seu pontificado se apresenta cada vez mais como o das oportunidades desperdiçadas, não como o das ocasiões aproveitadas”. Muitas esperanças de católicos comprometidos, infelizmente, não foram realizadas.
A dureza, em parte pungente, do texto certamente é compreensível a partir da desilusão e da amargura gerais por causa da difundida sordidez romana, assim como por causa da cegueira dos bispos. Pode-se também compreender aqueles crentes que concordam, sim, com Küng sobre essa questão, mas prefeririam uma escolha de palavras mais conciliadora e um tom mais benévolo, também para conquistar à causa aqueles que a carta quer atingir: os bispos – e o Papa. As seis propostas na segunda parte do texto talvez não sejam novas nos conteúdos, mas na situação presente devem ser objeto de reflexão.
Hans Küng deseja – como primeira coisa – que os bispos não se calem, mas que, com coragem, defendam abertamente sua própria opinião quando não estão de acordo com determinadas declarações ou disposições do Vaticano. É conhecido, por exemplo, que, no caso da longa readmissão da liturgia tridentina, eminentes cardeais e bispos queriam dissuadir o Papa do seu propósito – em vão. E antes da anulação, sem condições, da excomunhão dos bispos lefebvrianos o episcopado não foi informado de nada.
Em segundo lugar – assim afirma Küng –, são importantes as iniciativas pessoais: “Na Igreja e no episcopado, são muitos os que se queixam de Roma, sem que eles mesmos façam alguma coisa. Mas hoje, quando numa diocese ou paróquia não se vai à missa, quando o trabalho pastoral é ineficaz, quando a abertura às necessidades do mundo limitada, ou quando a cooperação ecumênica é mínima, não se pode jogar todas as culpa sobre Roma. Todos, bispo, sacerdote ou leigo, devem se comprometer com a renovação da Igreja”.
Em terceiro lugar, o teólogo lembra que o último Concílio, depois de um debate ardente, decretou a colegialidade de Papa e bispos. O próprio Pedro não agia fora do colégio dos apóstolos. Na prática, infelizmente, as coisas continuam sendo obscuras aqui. A colegialidade deve exigida com ainda mais tenacidade.
Em quarto lugar, pergunta-se como se pode conciliar o juramento de obediência dos bispos com relação ao Papa com o dever absoluto de obedecer apenas a Deus. Na crise isso pode incluir “uma pressão sobre as autoridades romanas no espírito da fraternidade cristã”, na responsabilidade pelo Evangelho, assim declara Küng. Nenhuma falsa harmonia! Já nos primeiros tempos apostólicos, havia controvérsias por boas razões, para levar adiante inovações. Muitas reformas da história da Igreja foram alcançadas graças a uma “tenaz pressão vinda de baixo”.
Em quinto lugar, Küng propõe que se busque pelo menos soluções regionais, se em nível de Igreja universal não é possível avançar. Na Igreja particular latina, por exemplo, o celibato é prescrito a todos os sacerdotes diocesanos, enquanto para as Igrejas católicas orientais ele não é vinculante. Por que aquilo que é possível para as regiões orientais, na grave crise da falta de padres, não pode valer também para as regiões ocidentais, se a “salus animarum” assim o exige?
Em sexto lugar, Küng, junto com muitos fiéis, está convencido de que nenhum caminho leva hoje a um novo Concílio. “Um século antes da Reforma, o Concílio de Constança aprovou a realização de um concílio a cada cinco anos”. Isso não foi atendido por Roma. Assembleias episcopais representativas e com poder decisional estão, porém, em um desenvolvimento mundial sempre mais dinâmico, mais necessárias do que nunca no curto prazo.
Em conclusão, Küng dirige um apelo aos bispos para que joguem novamente sobre a balança o peso da sua autoridade apostólica original, revalorizada pelo Concílio. “O único modo de recuperá-la é o de enfrentar honesta e abertamente os problemas para adotar as reformas consequentes… Deem aos vossos fiéis sinais de esperança e alento e uma perspectiva à nossa Igreja”.
Pensar e rezar juntos
Naturalmente, as reformas da Igreja não reanimam automaticamente a fé cristã. As maciças rupturas com a religião e a letargia nas Igrejas territoriais evangélicas, que realizaram muitas das reformas, documentam isso dolorosamente. Porém, melhorias atmosféricas no clima da Igreja não devem ser subavaliadas. Elas podem dar asas ao espírito de fé. A história da Igreja demonstrou isso muito frequentemente, superando assim até as fases de uma quase total falência moral e intelectual-espiritual do papado.
E nem se deveria pedir muito ao papado. A Igreja Católica tem, sim, um Papa, e isso é um bem, no sentido de que há aquela figura-guia íntegra que busca promover a unidade de fé e esperança na verdade e no amor. Os católicos, porém, não “acreditam – ingenuamente – no Papa”, mas são, certamente, de modo reflexo, fiéis com o Papa, no comum seguimento de Jesus Cristo, isto é, do único chefe da Igreja, o qual é caminho, verdade e vida.
Enquanto “representante de Cristo”, o Papa deve e quer conduzir a Cristo, redespertar a fé, confirmar na fé os irmãos, de forma que a luz do conhecimento divino ilumine os corações e libertes as almas. Esse esforço, teológico no melhor sentido, que conduz a Deus deveria ser valorizado nestas horas, sem dúvida muito difíceis para o Papa Bento XVI.
Apesar das diferentes avaliações sobre o caminho da Igreja e sobre as decisões romanas mais ou menos felizes, a luta do Papa pela fé merece simpatia, compreensão, compaixão, mas também partilha e solidariedade na oração.
Além disso, é preciso observar objetivamente que em todos os sistemas complexas – e a Igreja o é – o poder de direção e a impotência de quem dirige são estritamente conectados. No âmbito secular da política, vimos isso recentemente na crise financeira. No âmbito sagrado da Igreja, a crise dos abusos mostra isso agora. Um Papa também está sujeito a circunstâncias sociais, estruturais e comunicativas, cujas condições legais autônomas valem em todo o lugar.
Papado e conselheiros
Um Papa, além disso, como toda personalidade que tem uma responsabilidade diretiva, faz referência a conselheiros corajosos e independentes, tanto críticos quanto leais, os quais tornam presente realmente a pluralidade dos argumentos e não dizem simplesmente o que se gosta.
Se lobistas calculadores se infiltram predominantemente, sugeridores de corte que vão e vêm, e que fazem valer apenas os seus interesses privados, qualquer direção – seja política, econômica, cultural ou justamente também eclesial – se encontra diante de um problema.
Um Papa, como qualquer outra pessoa e detentor de um ofício, também tem necessidade de fortes opiniões alternativas para formar sua própria opinião, tanto para corrigi-la, quanto para autocorrigi-la. Isso não ocorre por puro gosto de contradições, mas sim por amor à Igreja. Um Papa, enquanto supremo mestre da Igreja, deve, ao mesmo tempo – como Pedro –, ser sempre um primeiro discípulo que aprende, que se deixa instruir.
Além disso, para um Papa de 83 anos como é Bento XVI/Joseph Ratzinger, com uma longa história pessoal rica de experiências positivas e negativas, certamente não é fácil reconduzir à síntese as primeiras fases, que lhe são continuamente lembradas e frequentemente jogadas na cara, de teólogo conciliar aberto às reformas, com as desilusões sucessivas acerca dos limites da renovação da fé, com as suas pessoais preferências pela espiritualidade tradicional e, enfim, com o medo de um possível desvio da Igreja ao relativismo.
Apesar disso, o atual forte acento posto na tradição não pode se converter em um “neoantimodernismo”, do qual infelizmente há indícios.
O sistema curial vaticano, que se isentou de qualquer legitimação democrática e divisões dos poderes, exatamente por esse motivo sofre de um conflito entre onipotência diretiva e fraqueza de direção, que de fato é comum a todos os sistemas de poder não controlados democraticamente.
Isso não depõe absolutamente contra o papado, mas induz, pelo contrário, ao reforço muito mais duradouramente do princípio de colegialidade e de sinodalidade em todos os níveis, assim como pede Küng, e não só ele.
A perda de autoridade e de confiança na hierarquia, justamente no centro do povo de Deus eclesialmente ativo e comprometido, é dolorosa para todos. Essas crises são, porém, uma ocasião oportuna para tomar consciência de como ser-cristão e ser-Igreja estão estritamente entrelaçados um ao outro.
À necessidade de confiança, que é ao mesmo tempo uma necessidade de fé, não podemos nos isentar individual e privadamente, mesmo que possa ser grande a tentação e às vezes a raiva. Mas se amamos a fé cristã que herdamos, que nos foi confiada e que, ao mesmo tempo, fizemos ativamente nossa, uma fé que ama a razão, pode haver apenas um caminho de saída: renovação graças à fidelidade tenaz àquele Cristo que não é só o passado, mas justamente o amanhã, o alfa e o ômega.
Enquanto batizados de Cristo, além de confirmados pelo Espírito Santo, todos temos parte sacramentalmente no sacerdócio do nosso divino salvador. Isso nos liga à responsabilidade “embaixo” assim como “no alto”. Juntos, somos fiéis, juntos como Igreja – mais do que nunca quando se torna difícil de sê-lo.
Fonte: Instituto Humanitas UNISINOS, RS