NUMA CARPINTARIA


Em cada final de ano, o João Silvino da Conceição parece um outro ser humano. As festividades natalinas o deixam um tanto esquivo, deprimido até, sem muita vontade de ficar enturmado. Como se tivesse vergonha de manifestar contentamentos numa época repleta de muito fingimento, com milhões passando um aperto gota serena, outros tantos sem conseguir debelar a fome crônica. E como se a fome não mais rondasse os lares de ninguém, inclusive dos brasileiros.
Apesar de macambúzio, o João não perde a mania de contar histórias, de revelar sua enorme paixão pelos menos sortudos, de torcer por uma humanidade socialmente equilibrada, diminuídas as distâncias financeiras entre os da cobertura e os do lixão. A última dele, retrabalhada a partir de um texto internético enviado pela Kika, uma amiga sua que dispensa silicone, tem tudo a ver com os dias de agora. Vale a pena divulgar o fato neste canto de página, alimentando a esperança de ver a semente cair em terreno de boa parição. Eis o que o Silvino rabiscou, ajeitados devidamente os atentados gramaticais:
“Contam que em uma carpintaria aconteceu uma muito estranha assembléia: uma reunião de todas as ferramentas para acertar suas diferenças. Tendo o martelo assumido a presidência, logo alguns participantes lhe notificaram que teria de renunciar. A causa? Fazia demasiado barulho o dia todo, golpeando a torto e a direito, sem dó nem piedade.
O martelo aceitou a carapuça, mas requereu também a exclusão do parafuso, posto que vivia dando um sem-número de voltas para conseguir alcançar seus objetivos. O parafuso, por sua vez , encaminhou requerimento de eliminação da lixa, segundo ele uma portadora de muita aspereza nos seus relacionamentos, sempre em continuados atritos.
A lixa, meia chorosa, acatou de pronto a sua saída, com a condição de também ver fora da carpintaria o metro, um enxerido que sempre media os outros segundo seus critérios técnicos, como se fosse o único perfeito.
O qüiproquó estava formado, quando entrou o carpinteiro, juntou o material e começou o seu trabalho. Utilizou o martelo, o parafuso, a lixa e o metro, finalmente convertendo a madeira rústica num móvel de fino acabamento.
Retirando-se para sua casa, já noite alta, novamente a assembléia se instalou, o microfone da vez cabendo a um serrote muito usado, de dentes nada afiados e já meio esmorecido de tanto bifurcar pedaço de pau dos outros:
– Companheiras e companheiros! Nesta assembleía ficou demonstrado que todos têm defeitos. Mas o carpinteiro que acaba de encerrar seu expediente trabalhou com as nossas qualidades. Assim sendo, encareço não pensarmos apenas nos nossos pontos fracos. Concentremo-nos nos nossos pontos fortes, os mais valiosos para o sucesso das nossas iniciativas.
Foi então que todos principiaram a perceber que o martelo é forte, o parafuso unia, a lixa atenuava asperezas e o metro era indispensável para procedimentos precisos. E assimilaram uma lição importante: agindo como uma equipe, cada um perseverando na redução das suas deficiências, seriam capazes, como um todo, de produzir móveis de qualidade. Cada um sabendo ser parte de um todo, a individualidade nunca sendo substituída pelos egocentrismos que castram e somente desarticulam”.
É do João Silvino o arremate: “Quando uma pessoa busca defeitos em outra, a situação torna-se tensa e negativa. É fácil encontrar defeitos. Encontrar qualidades, entretanto, é tarefa apenas para talentosos!”.