NABUCO, ABOLICIONISTA E ARANHEIRO


Merecedor de parabéns o Jornal do Commercio do Recife, pelos dois suplementos da edição de domingo último, 15, nos cem anos da eternização de Joaquim Nabuco e às vésperas do dia do seu nascimento, 19 de agosto. O primeiro, Quase Brancos, Quase Negros, analisa um fenômeno que camufla preconceitos: como “embranquecem” os negros que usufruem de promissoras condições financeiras e como “escurecem” os brancos que vivenciam pobreza, sem eira nem beira. O segundo suplemento, essencialmente desoficial, retrata o abolicionista que presenteava seus bigodes com brilhantina importada. Um “nascido para ator” que era querido pelas mulheres simples e pelas poderosas, alicerces todas elas do seu apelido de Quincas, o Belo, tamanha sua habilidade nas conquistas amorosas, de preferência com mulheres mais velhas que ele. Um intrépido caçador de “aranhas” – terminologia calcada nas pesquisas de Mário Souto Maior -, que, nos Estados Unidos, bem antes de ser embaixador, muito se decepcionou com o fato de as mulheres casadas daquele país não cederem aos seus encantos, obrigando-o frequentemente a procurar “raparigas de vida livre”, para não ficar a ver navios ou com tremuras sistematizadas na mão direita.

No primeiro suplemento, a reportagem Da Cohab para Manhattan, da Flávia de Gusmão, uma das penas notáveis do jornalismo pernambucano, admiração minha de longa data, deveria ser reproduzida aos montões e distribuída aos alunos leitores dos primeiros graus do ensino pernambucano. Conta fato acontecido por ocasião da eleição de Miss Pernambuco Infantil, em 1997, no Teatro Barreto Junior, vencido pela hoje modelo Emanuela de Paula, faturamento de 2,5 milhões de dólares em 2009, a 11ª. modelo mais bem paga do mundo, informação da revista Forbes. Segundo Emanuela, após ser eleita Miss Pernambuco Infantil, então com 8 anos, ouviu partirem da plateia gritos de “negrinha”, “crioula”, entre outras exclamações mais canalhas.

O texto da Flávia revela ainda que a grosseria acontecida no concurso Miss Pernambuco Infantil às vezes retorna. Recentemente, a Emanuela foi chamada de “macaca” por uma antiga parceira de trabalho, que profissionalmente não obteve sucesso, e hoje, mesmo sendo branca, vive enfrentando as barras da justiça por procedimentos ilícitos praticados.

Os preconceitos raciais ainda continuam a existir, mesmo que “por debaixo dos panos”, como canta o Ney Matogrosso, um performático dezoito quilates. No escrito da Flávia de Gusmão, também a informação de que o Ministério Público de São Paulo, em 2009, obrigou a São Paulo Fashion Week (SPFW) a assinar um termo de ajustamento de conduta, que se comprometia a compor um mínimo de 10% de presença de afrodescendentes e indígenas nos desfiles por ela patrocinados, ampliando a presença de não-brancos nas passarelas.

Para quem ainda nutre ranços preconceituosos, o Relatório de Desenvolvimento Humano – Brasil 2005, IPEA, é categórico: “As diferenças ‘raciais’ humanas se limitam a no máximo 0,001% do genoma do Homo Sapiens. Assim, no sentido biológico, só existe uma ‘raça’, a humana. No entanto, utiliza-se ‘raça’ como categoria analítica para agregar indivíduos e grupos que compartilham aspectos físicos observáveis, como cor de pele, textura do cabelo e compleição corporal”.

Dos dois suplementos do Jornal do Commercio, gostei imensamente do que fala mais de perto de Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, o conhecido Joaquim Nabuco, abolicionista e aranheiro. Porque ele ressalta o Joaquim Nabuco que não precisa ser canonizado, um abolicionista que necessita ser estudado a partir das suas qualidades, seus ideais e também seus interesses pessoais. O trabalho da historiadora Célia Maria Marinho de Azevedo atua como um contraponto diante das “canonizações” oportunistas em torno do grande abolicionista. Mesmo porque Joaquim Nabuco, no pensar do ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, “antes de ser um grande abolicionista, Nabuco era um grande estrategista. … A carreira dele teve várias reviravoltas, ele foi um monarquista, passou algum tempo no ostracismo e só depois é que vai aderir à República. Era liberal e depois aderiu aos conservadores”. Segundo o ministro, “esse movimento (de Nabuco) não macula a sua imagem; ela na verdade ajuda-nos a entender o cenário político atual”.

Reverenciar Joaquim Nabuco, sempre! Canonizar Nabuco, jamais, pois, assim procedendo, se estrá contribuindo para nulificar os combates contra o racismo que ainda consterna a cidadania brasileira. Um preconceito maior que os demais, que necessita de uma vez por todas ser defenestrado da face da terra. Como também deve ser erradicado aquele estereótipo que faz do Nordeste e dos nordestinos espaço e gente merecedores de muita piedade. Um estereótipo reacionário revela desprezo por aquele que saiu de Caetés, Pernambuco, para ser Presidente da República. Um dos mais aplaudidos da nossa história republicana.

(Publicada em 19.08.2010, Portal da Globo Nordeste, blog BATE & REBATE)
Fernando Antônio Gonçalves