NA ENCRUZILHADA DA HISTÓRIA


Alguns fatos me entusiasmaram recentemente. O primeiro deles foi a declaração do premiê da Dinamarca, Iens Stoltenberg, após o ato terrorista praticado por um débil mental, matando mais de setenta pessoas: Mais democracia, menos ingenuidade, disse ele, com um equilíbrio emocional de fazer inveja, se comparado aos histerismos surgidos na mídia nacional nos últimos tempos.

O segundo foi escrito pelo analista André Barcinski, horas após as infovias revelarem a eternização de Amy Winehouse, auto-vitimada por uso de álcool. Um texto que deve ser lido pelos que sobrevivem numa conjuntura mundial profundamente equivocada como a atual, onde um capitalismo desregulado, segundo o historiador Tony Judt (1948-2010), é seu pior inimigo, e uma esquerda precisa ser possuidora de mais criatividade e cativação, repleta que se encontra de farofas e gatunagens. Ei-lo, sem tirar uma vírgula: “Engraçado como um fato vem, de vez em quando, botar as coisas em perspectiva. Amy Winehouse morreu. De verdade. Fato. Acabou o reality show macabro de sua vida. Nenhum fã vai poder aplaudir de novo quando ela chegar ao palco bêbada, ou quando esfregar as costas da mão no nariz, como se tivesse acabado de dar um teco. Ontem, a mãe de Amy, Janis, disse aos jornais: ‘A morte dela era apenas uma questão de tempo’. Pouco depois, a família Winehouse divulgou uma nota à imprensa, pedindo ‘privacidade’. Curioso: a mesma família que pede privacidade é a que passou os últimos anos dando entrevistas a programas de TV sensacionalistas, como fez o pai de Amy, Mitchell. A verdade é que a vida de Amy Winehouse foi uma espécie de farsa trágica, acompanhada em tempo real pelos fãs e pela mídia. Amy não foi uma vítima. Era maior de idade e sabia muito bem o que estava fazendo. Era uma pessoa doente e que precisava de tratamento. Infelizmente, muita gente dependia dela. Celebridades não têm tempo para se tratar, porque não podem simplesmente desaparecer. Uma das coisas mais sensatas que ouvi sobre o caso de Amy veio do médico norte-americano Drew Pinsky, especialista em tratamento de viciados. ‘Uma pessoa que chega ao estágio em que Amy chegou precisa de muitos meses de tratamento só para recuperar a consciência de que precisa se tratar’, disse. ‘Só que ela é uma celebridade, de quem muitas pessoas dependem para ganhar dinheiro, e parar de trabalhar é a última prioridade’. Pisnky citou, como caso de recuperação bem sucedida, o ator Robert Downey Jr: ‘Ele fez o certo: sumiu de cena por dois ou três anos, completou seu tratamento, e depois retornou à vida pública’. Ironicamente, Pinsky é apresentador de ‘Celebrity Rehab with Doctor Drew’, um programa de TV dos mais apelativos, em que subcelebridades tentam se livrar do vício em drogas e álcool. Diz muito sobre nós que a pessoa convidada para ‘iluminar’ o caso de uma celebridade junkie seja, ela mesma, uma celebridade. Sempre defendi aqui que a mídia é um espelho da sociedade. A mídia não cria, ela replica o sentimento coletivo. Se existem repórteres e ‘paparazzi’ que viviam perseguindo Amy, é porque há uma multidão de consumidores, babando por informações sobre a cantora, por mais inócuas que fossem. E se outras junkies talentosas como Bille Holiday ou Janis Joplin tivessem vivido durante a era do Youtube, garanto que haveria um site como www.when willbillieholidaydie. Sinal dos tempos.”

O terceiro fato, um livro esbofeteador, tem como autora a socióloga Patrícia Bandeira de Melo, da Fundação Joaquim Nabuco. Intitulado Histórias que a Midia conta: o discurso sobre o crime violento e o trauma cultural do medo, analisa os efeitos perversos provocados pelas informações que geram pânico nas mais diversas comunidades. Onde tudo é romantizado, não há planejamento público de médio prazo, valendo apenas as “aparecências midiáticas”, aquelas que apenas noticiam histericamente para satisfazer sensações pouco nobres de uma parte da clientela também mórbida.

As classes sociais brasileiras cidadanizadas necessitam melhor direcionar e redimensionar suas estratégias de instituir seus cenários futuros. Sua ainda ínfima capacidade associativa exige reposicionamentos mais consequentes, diferenciando coalizões necessárias das associações espúrias, demagógicas , populistas ou meramente eleitoreiras. Ela precisa voltar a apreender melhor a realidade social do país, preparar-se para novos embates, com erros e acertos, os primeiros sendo gradativamente minimizados pela ampliação de uma cada vez mais sólida cidadania crítico-libertadora. Ficamos, às vezes , muito seguros do que aprendemos no passado. E sentimo-nos bem fundeados sobre coisas que assimilamos quando éramos moços, perdendo, por tamanha ingenuidade, o bonde da história. Porque o bonde sempre está em movimento e com uma velocidade cada vez maior. E quando as pessoas perdem bonde, começam só a olhar para o passado , nostálgicas, sem qualquer reoxigenação.

Uma sadia modernidade deve reincorporar as inúmeras vantagens das relações perdidas, dos gostos esquecidos, dos níveis culturais despedaçados por um consumismo imediato e asneirado pelos endinheirados de final-de-semana, culturalmente apatetados, presas fáceis dos “magos da mente”, inúmeros já explicitando um cansaço generalizado, incomodativo até, rima perfeita para manobras atocaiadas dos que se imaginam donos do pedaço e sócios de Deus. Alguns até se imaginando sósias.

(Publicada em 15/08/2011, no Portal da Revista ALGOMAIS, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves