MILTON SANTOS E OS AMANHÃS


Semana passada, a Trudinha, prima mais querida, comemorou bodas de ouro dos seus quinze anos, ela ainda muito bem conservada, com tudo nos lugares e cheirosa por todos os poros, sempre alegre, arquiteta de mão cheia, demanda de projetos sempre garantida.

No congraçamento que proporcionou aos Gonçalves e adjacência, um outro primo querido, o Geraldo da Fátima, comentava que seu pedreiro tinha três telefones celulares, um número de cada companhia, usando cada um deles de acordo com o telefonema do receptor. Conversa vai, conversa vem, entre uns petiscos deliciosos, o nome do geógrafo baiano Milton Santos (1926-2001) foi posto à mesa como um talento que tinha se especializado em globalização e reorganização planetária, tendo sido até agora o único Prêmio Nobel Brasileiro de Geografia, conquistado em 1994.

E recordações múltiplas aconteceram sobre o baiano famoso. Exilado na França, após prisão perpetrada pelos coturnos autoritários golpistas, retornado ao país somente em 1978, Milton Santos até hoje talvez tenha sido “um dos mais sensíveis críticos dos efeitos da globalização no Brasil e no mundo”, segundo a historiadora Adriana Venâncio, doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Brasília (UnB), Mestra em Educação pela Unicamp, colaboradora da revista Leituras da História, editora Escala. Segundo ela, Milton Santos sempre alertava, em seus escitos, sobre o sentimento de inação que nos impossibilita de perceber politicamente o que a globalização traz de positivo ou de perverso.

O papo foi até depois do jantar servido, lembrando todos a imperiosa função pedagógica dos atuais níveis educacionais brasileiros: “capacitar os cidadãos para criticarem o consumismo e reaprenderem as tarefas da cidadania, objetivos que não podem ser alcançados separadamente”. Sem tal tarefa libertadora, a ideologia do consumismo, doença do comprar desenfreado ficará cada vez mais impreganada na população em geral. Até ela descobrir que não basta apenas consumir, tal e qual um ser passivo, sendo necessária se tornar cidadanizado, com direitos sociais nunca doados, mas conquistados.

A intelectualidade brasileira necessita se livrar da estocada do poeta pernambucano Daniel Lima, recentemente eternizado: “O intelectual é um urubu / que se julga vestido, / mas que está nu, / com uma pena de pavão / enfiada / no cu.” E segundo Milton Santos, aos intelectuais cabe papel significativo, embora atualmente, a própria Adriana Venâncio é quem denuncia, “esses mesmos intelectuais têm destinado seus esforços mais no sentido de favorecer uma militância de discursos ambíguos e momentâneos do que para um trabalho permanente e gradual de conscientização coletiva”. Posto que, “intelectual é o indivíduo que tem um compromisso único com a verdade”.

Lamentavelmente, muitos analistas e pesquisadores continuam a estudar o ser humano como um cliente possível, nunca como um cidadão que necessita de um saber pensar, muitos furos acima de um mero consumir, para anunciar e denunciar, proclamando alto e bom som que outro mundo é necessário, para a sobrevivência de todos.

O economista Carlos Lessa, talento brasileiro ímpar, contou recentementeum fato sifnificativo, vivenciado por ele próprio. Visitando alguém na Barra da Tijuca, na saída entrou numa livraria. Nela encntrou bichinhos eletrônicos de pelúcia, rinocerontes movidos a raio laser, que se transformam em veículos aeroespaciais, além de uma sessão de bombons importados e chocolates das mais variedades modalidades. E mais uma sessão de revistas de ginásticas – 15 títulos – para a boa conservação do corpo. E, o que chamou a intenção do Lessa, na tal livraria não tinha livro algum!

Já disse, em inúmeras oportunidades, que possuo colossal dívida de gratidão para com a Fundação Joaquim Nabuco, onde aprendi a ser mais nordestino e não-tecnocrático, a partir de um depoimento de Oswald de Andrade, intelectual paulista: “Uma cultura nativa se forma e resiste entre nós. No domínio da sociologia mudou-se muito depois de Franz Boas e sua escola. Tivemos aqui um fenômeno curioso que foi o sucesso fulminante da obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala. Eis aí um livro que muitas vezes eu tenho chamado de totêmico, isto é, um livro que apóia e protege a nacionalidade”. Uma opinião que me fez compreender melhor o chamamento do pernambucano Souza Barros, ex-Secretário Geral da Associação Mundial de Luta Contra a Fome: “O Norte e o Nordeste não poderão continuar numa situação de completo alheiamento dos seus problemas, pois essa atitude corresponde, politicamente, a uma espécie de menoridade. Não basta, porém, que se coloque o problema do ponto de vista de uma ação lamento, de um constante clamor contras as causas climatéricas, as causas físicas”.

Ser cidadão está acima da profissionalidade necessária. É bem saber possuir as duas mãos e o sentimento do mundo, como proclamava Carlos Drummond de Andrade.

(Publicada em 04/06/2012, no Portal da Revista ALGOMAIS, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves