MEIO SÉCULO SEM CAMUS


No dia 4 de janeiro último, homenagens várias pelo cinquentenário de eternização de Albert Camus, um dos maiores talentos literários do século 20. Francês nascido na Argélia, onde viveu sob os temores da guerra, da fome e da miséria, Camus transformou aqueles sintomas em alicerces do seu pensar. Segundo a Folha de São Paulo, reproduzindo Olivier Todd, Camus “foi, em primeiro lugar, um escritor, um artista, um artesão, muito mais que um filósofo da linhagem de Platão, Kant, Sartre ou Wittgenstein”. Todd escreveu uma biografia sobre Camus – Albert Camus Uma Vida, Record, 1998 -, ressaltando a resistência do notável escritor ao nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Seus trabalhos o tornaram, em 1957, Nobel de Literatura, quando também foi mundialmente consagrado como um dos melhores analistas dos momentos históricos por ele vivenciados.
Na casa da infância do escritor, moravam com ele sua mãe, sua avó e um tio meio surdo que era tanoeiro. Uma profissão que Camus teria seguido se não fosse a insistência de um professor da escola primária que frequentava, Louis Germain, que percebeu o potencial intelectual daquele quase adolescente.
A mãe de Camus trabalhava lavando roupa para fora, contribuindo com as despesas da casa, numa época que Camus quase abandonava os estudos por problemas fnanceiros. Quando um outro docente, Jean Grenier, muito o incentivou na continuação dos seus estudos.
Emociona o sentimento de gratidão demonstrado por Albert Camus aos dois mestres que o incentivaram. O livro O Homem Revoltado, editado em 2003 pela Livros do Brasil, é dedicado a Grenier. Um outro livro, Discursos da Suécia, onde está incluso o seu pronunciamento na solenidade de recebimento do Prêmio Nobel, é dedicado ao mestre Germain.
Amigo de Jean Paul Sartre, após este ter elogiado o livro O Estrangeiro, com ele desentendeu-se definitivamente após a publicação de O Homem Revoltado, que os colocou em campos inconciliáveis, provocando a emersão de argumentos dos mais variados tipos, alguns vis. A Guerra Fria estava no auge.
A tese de doutoramento de Camus foi sobre Santo Agostinho, deixando-o apto para seguir uma memorável carreira docente. Sonho não concretizado face uma tuberculose que lhe deu uma possibilidade cotidiana de morrer, perspectiva que se tornou fundamental no desenvolvimento da sua obra, ainda impedindo-o de praticar o futebol, onde foi goleiro da seleção universitária. Em 1949, quando de uma visita sua ao Brasil, o que mais o impressionou foi o amor do brasileiro pelo futebol. Conta-se um fato bastante incomum logo após sua chegada: um dos seus primeiros pedidos foi o de assistir uma partida de futebol.
Albert Camus eternizou-se em 1960, vítima de um acidente de automóvel, onde somente ele sairia vítima. Em sua maleta de viagem foi encontrado o manuscrito de O Primeiro Homem, um romance autobiográfico. Que por uma ironia do destino dizia, em uma das notas de rodapé, que aquele escrito deveria terminar inacabado.
O biógrafo de Albert Camus, Oliver Todd, na entrevista concedida à Folha de São Paulo, faz duas advertências: “Ver Camus como ícone descarnado não é lhe render homenagem. É preciso conservá-lo vivo em sua complexidade e suas contradições. … Camus não é nem exemplar nem edificante. Ele nos leva a refletir. Que as pessoas o leiam em lugar de repetir generalidades sem compreender o seu percurso”.
Em função dos ditos acima, certa feita, alguém indagou de Camus se ele ainda fazia parte da esquerda. A resposta foi espetacularmente século XXI para todos os nunca retilíneos progressistas éticos brasileiros: “Sim, apesar dela e apesar de mim”.
Por isso e por muito mais, a família de Camus recusou a proposta, considerando-a um contrasenso, de transferir seus restos mortais para o Panteão parisiense. Uma bolação de Sarkozy, um conservador fantasiado de popular, de posições e valores diametralmente opostos aos que Albert Camus defendia.
(Jornal do Commercio, Recife, PE, 03.02.2010)
Fernando Antônio Gonçalves