LIVROS INCOMUNS
Quando o escritor judeu Elie Wiesel recebeu o Prêmio Nobel, em 1986, uma reflexão sua ecoou pelo salão de premiação, repercutindo em todo mundo: “Eu tenho tentado manter minha memória viva… Tenho tentado combater aqueles que prefeririam esquecer. Porque se nós esquecermos, nós somos culpados, somos cúmplices.” E num papo com amigos judeus, semana passada, quando reverenciávamos o nonagenário aniversário de Wiesel, recebi de um quase irmão hebreu um livro incomum por derradeiro: Holocausto: os eventos e seu impacto sobre as pessoas reais, Angela Gluck Wood, Barueri, SP, Editora Manole, 2013, 192 p. Onde, na quarta capa, se explicita a motivação da produção editorial, prefaciada por Steven Spielberg: “O livro que você tem em mãos é único. Ao mesmo tempo em que é um respeitável registro sobre O Holocausto que combina textos e imagens de um modo totalmente incomum, também é um registro humano da Shoah e de seu significado. As páginas que se seguem são repletas de estatísticas e fatos, muitos deles apavorantes. Mas estas páginas contêm também rostos e palavras de homens e mulheres que sobreviveram ao mundo homicida da Europa dominada pelo regime nazista.” E mais: “Você também encontrará outro elemento singular ao volume: um DVD contendo entrevistas em vídeo de muitos sobreviventes cujos nomes estão nestas páginas. Esses homens e mulheres falaram de suas experiências de modo direto e cândido às câmaras e microfones do Instituto de História Visual e Educação da Fundação Shoah da Universty of Southern California (USC). O trabalho do Instituto é o trabalho profissional mais importante de minha vida. Sinto-me profundamente orgulhoso por sua realização e verdadeiramente emocionado por você, leitor, ter a oportunidade de aprender sobre o Holocausto por meio do conjunto de testemunhos recolhidos para este livro e para o DVD que o acompanha.”
O livro contém as seguintes partes: Os Judeus na Europa; Domínio Nazista; Os Guetos; O Assassinato das Vítimas; Agarrando-se à Vida; O Fim da Guerra; As Consequências. Páginas que expressam animalidades e resistências, pusilanimidades e bravuras extremas. Em todas elas, uma seção chamada Vozes traz testemunhos de sobreviventes, a maioria deles extremamente dolorosos. Selecionamos um deles: de Thea Rumstein, austríaca, nascida em 1928: “Nós os vimos começando a marchar pelas ruas e, claro, no dia seguinte todas as lojas tinham cartazes dizendo ‘Juden sind hier. Unerwunscht’ (Judeus não são bem-vindos aqui). E nas lojas, eles escreviam Jude na fachada delas e todo tipo de coisa acontecia. Havia muita coisa acontecendo e você estava lá sentado e não realmente via o que estava para acontecer – mas logo bem descobrimos. Foi terrível. A primeira coisa que me lembro muito bem foi quando cheguei da escola (isso foi bem no começo), fui à rua onde morávamos e havia um enorme grupo de pessoas por ali gritando e gritando ‘Juden’ e continuavam, e então vi mãe na rua, limpando a rua! Eles a fizeram limpar os cartazes que colocaram nas ruas para as eleições. Então eu disse: ‘Mãe! O que você está fazendo aí ?’ E ela respondeu: ‘Thea, vai para casa! Vai para casa! Ela não queria que eu ficasse lá. Eu chorei terrivelmente e não fui, continuei lá gritando: ‘Mamãe, mamãe!’ E as pessoas não tinham compaixão alguma. Elas estavam tomadas por ódio. Todas elas. Todas.”
A história do antissemitismo, ódio aos judeus, remonta a tempos muito antigos, embora tenha sido fortalecida pela Igreja Católica medieval, que disseminavam que tinham sido judeus os responsáveis pela morte de Cristo no madeiro. O próprio Martinho Lutero, em 1543, no livro Dos judeus e suas mentiras, assim se pronunciava: “Eu aconselho que as casas dos judeus também sejam arrasadas e destruídas. Pois nelas, eles perseguem os mesmos objetivos que em suas sinagogas. Como alternativa, eles podem ser alojados sob qualquer teto ou em um celeiro, como os ciganos. Isso lhes dará a certeza de que não são líderes em nosso país, tal como se vangloriam, mas sim que estão vivendo em exílio e cativeiro, como eles lamuriam e lamentam sobre nós diante de Deus.”
Um outro livro incomum foi editado o ano passado (2017): Histórias de Vida: refugiados do nazifascismo e sobreviventes da Shoah – Brasil: 1933 – 2017, SP, Mayanot, 2017, 2v., projeto coordenado por Maria Luiza Tucci Carneiro e Raquel Mizrahi, que ressaltam: “As histórias de vida aqui publicadas têm elementos comuns, que formam uma trama e nos ajuda a reconhecer em cada personagem mais uma vítima da intolerância que abalou a Europa nas décadas de 1930 e 1940. Valorizamos também aqueles que lutaram nas frentes de resistência, os partisans, ampliando para as ações humanitárias dos Justos e Salvadores que escolheram o Brasil como sua segunda pátria. Importante ressaltar que esta é uma coleção aberta às novas vozes, idealizada para quebrar os silêncios da História. Para lembrar sempre, para não esquecer!” E dão testemunho contundente: “Em cada uma das histórias descobrimos que as cicatrizes ainda sangram, são como marcas subjetivas, conectadas ao “eu” de quem narra e que não devem ser desprezadas. Cada qual, em sua singularidade, nos oferece uma perspectiva e dimensão histórica acerca do Holocausto, demonstrando que as ações genocidas extrapolaram as fronteiras da Alemanha, Áustria e Polônia”.
Atualmente, o Holocausto, pelo seu caráter único e pela crueldade, não pode ser comparado a nenhum outro assassínio em massa. Não há justificativa lógica para a carnificina cometida contra mais de seis milhões de judeus. Tampouco qualquer explicação teológica. A Noite dos Cristais, as câmaras de gás de Auschwitz e os crematórios de Maidanek, entre outros, foram produtos da teoria racial germânica. Que devem continuar a ser combatidos, diante das efervescências sectárias surgidas nas duas últimas décadas.
Que as leituras acima sejam tijolos na grande muralha que conterá a intolerância, a xenofobia e o antissemitismo, preparando as nações para futuros luminosos, “repletos de conhecimento Divino, como as águas cobrem o mar”, segundo Isaías 11,9.
(Publicada em 08.10.2018, no Jornal da Besta Fubana e no nosso site www.fernandogoncalves.pro.br
Fernando Antônio Gonçalves