LIVRO MAL-HUMORADO


Se alguém fosse indagado sobre um livro mal-humorado, dificilmente escolheria um texto sagrado. Nunca se arriscaria na eleição de um deles. Mas o teólogo e pastor Ed René Kivitz não titubeou: o Eclesiastes é um livro mal-humorado. E escreveu sobre o assunto com propriedade. De sua autoria, O Livro Mais Mal-humorado da Bíblia, Mundo Cristão, 2009, busca captar “a proeminente sabedoria do rei de Israel e também a sua incrível franqueza”, quando o “grande sábio conclui que a vida não passa de mera vaidade”.
O Eclesiastes foi escrito no século III a.C. por um sábio judeu, sendo sua autoria atribuída ao rei Salomão, uma homenagem costumeira àquela época. Fato comprovado diante de textos citados no Eclesiastes que se referem à Septuaginta, a tradução grega do livro hebraico, datada de 250 a.C. O livro foi considerado pelo rabino Harold Kushner, o mais perigoso da Bíblia, no seu aplaudido livro Quando Tudo Não é o Bastante, editora Nobel, onde ele também ministra respostas para o corre-corre contemporâneo, onde todos desejam levar vantagens em tudo, num individualismo que submete a individualidade a cavilações humilhantes, inúmeras vezes imorais. Sem aquela solidariedade cósmica que deveria ser a razão primeira do nosso existir por estas bandas.
O livro do Kivitz desvenda os nós de uma sociedade de consumo que se exaspera ao perceber-se cada vez mais inconclusa, sempre angustiada diante das suas incapacidades de usufruir felicidade absoluta. A partir do questionamento de uma ainda não-adolescente – o que é a vida senão uma sucessão de fatos sem sentido? – Ed René estimula um contínuo investigar de cada um na busca de uma segurança mínima numa civilização celeremente movediça como a que vivemos. E oferece algumas observações “bussolínicas”:
1. O Eclesiastes tem um início que pode desanimar até os mais corajosos, caso não se perceba a âncora que está sendo oferecida, um verdadeiro salto qualitativo para a vida.
2. As quatro sugestões para vencer o tédio – prestar atenção nas pessoas, não na humanidade; prestar atenção nas singularidades; prestar atenção na vitalidade; e prestar atenção na insaciabilidade – se bem assimiladas, podem concretizar o cantado pelo Lulu Santos, da MPB: nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia…
3. O Eclesiastes é de dificil digestão. E Kivitz ressalta que o autor do livro foi alguém que vivenciou o que lhe parecia interessante, tirando conclusões sobre cada uma das “acontecências”.
4. O Eclesiastes oferece, no seu estilo mal-humorado, modos de superar os utilitarismos alienantes, os consumismos idióticos, os vitimismos, os dolorismos e os coitadismos que apenas buscam cinco minutos de notoriedade, se vistos sob perspectiva psicanalítica.
5. Saber vencer a morte, sem romantizá-la, dada a capacidade do ser humano de sobrepujá-la, desde que se perceba filho da Criação. São Paulo já proclamava, com muita propriedade, que “o último inimigo a ser vencido é a morte. Pois é necessário que aquilo que é mortal se revista de imortalidade”.
6. O Eclesiastes ressalta quatro armas contra injustiças: satisfação em detrimento da competição; a diversão em detrimento da acumulação; a cooperação em detrimento do isolamento; e a realização em detrimento da reputação. O melhor que se deixa, quando se parte, é auto-imagem consolidada, instrução para os derredores e talento lapidado. Além da capacidade de produzir riqueza e ultrapassar obstáculos.
Um dos capítulos mais chicoteadores do livro do Kivitz é o sexto, Vencendo a Religião, iniciado com uma assertiva de Voltaire que deveria estar fixada nos portões de entrada de todos os templos: “As verdades da religião nunca são tão bem compreendidas como por aqueles que perderam a faculdade de raciocinar”. Ed René oferece três conselhos para vencer a religião: falar pouco, jamais se atrever a fazer negócios com Deus, e andar no temor do Senhor.
Por fim, o autor de O Livro Mais Mal-Humorado da Bíblia presenteia o leitor com três maneiras de olhar para as Sagradas Escrituras: olhar para a Bíblia como um manual de instruções, olhar para a Bíblia como referência para a peregrinação espiritual, e olhar para a Bíblia como revelação de mistérios.
O livro do Ed René Kivitz chega em excelente conjuntura. Ele vem “atualizar” para os cristãos o texto escrito pelo rabino Harold Kushner, anos atrás. Tem contemporaneidade, ao analisar as estratégias significativas de como ultrapassar a acidez da vida, seja ela composta de bispos nunca pastores, pastores-financistas, chefes de Estado fanfarrões, clubes de futebol falidos, políticos salafrários e moralistas puritanosos, aqueles que, nos cultos religiosos, reviram continuadamente seus olhinhos suspirosos, imaginando-se pertinhos do Homão da Galileia, aquele Arretado que foi assassinado pelos antepassados dos sacripantas da pós-modernidade.