LIMITES MORAIS DO MERCADO


Plenamente convencido de que muita coisa se encontra troncha num mundo onde tudo parece estar à deriva, li o livro de Michael J. Sandel, um dos filósofos mais importantes da atual geração, nascido em 1953, Minneapolis, EEUU, hoje professor visitante da Sorbonne, Paris. E fiquei deveras impressionado com certas “aberrações” lá narradas, tudo sendo uma questão de quanto se deseja pagar.

No livro O Que o Dinheiro Não Compra, Civilização Brasileira, 2013, 5ª. edição, alguns exemplos são explicitados: Direito de ser imigrante nos Estados Unidos – US$ 500.000; Alugar espaço na testa (ou em outra parte do corpo) para publicidade comercial – US$ 777; Servir de cobaia humana em testes de laboratórios farmacêuticos para novas medicações – US$ 7.500; Direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção – US$ 150.000; O celular do seu médico – US$ 1.500 ou mais por ano; Direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera – aproximadamente US$ 18; Upgrade na cela carcerária – US$ 82 por noite; Barriga de aluguel indiana – US$ 6.250, onde a prática é legal e o preço corresponde a menos de um terço dos preços em vigor nos Estados Unidos; Direito de ser imigrante nos Estados Unidos – US$ 500.000, desde que gerem, com seus investimentos, pelo menos dez empregos numa região de alto nível de desemprego, o que lhe dá direito de também receber o green card, a residência permanente; e muita grana para o direito de matrícula de filho numa universidade americana de prestígio, mesmo que o matriculado não seja dotado de funções intelectuais minimamente necessárias, desde que seus pais sejam ricos e façam doações financeiras substanciosas para a instituição. E ainda oferecer US$ 2 para cada livro lido por aluno do ensino fundamental em escola com baixo desempenho. E um dado estarrecedor: “comprar da apólice de seguro de uma pessoa idosa ou doente, pagar os prêmios anuais enquanto ela está viva e receber a indenização quando morrer; potencialmente, milhões de dólares. Esse tipo de aposta na vida de estranhos transformou-se numa indústria de US$ 30 bilhões. Quanto mais cedo o estranho morrer, mais o investidor ganhará”.

Uma reflexão basilar do autor: “Quando a guerra fria acabou, os mercados e o pensamento pautado pelo mercado passaram a desfrutar de um prestígio sem igual, e muito compreensivelmente. Nenhum outro mecanismo de organização da produção e distribuição de bens tinha se revelado tão bem sucedido na geração de afluência e prosperidade. Mas, enquanto um número cada vez maior de países em todo o mundo adotava mecanismos de mercados na gestão da economia, algo mais também aconteceu. Os valores de mercado passavam a desempenhar um papel cada vez maior na vida social. A economia tornava-se um domínio imperial. Hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo. Está na hora de perguntarmos se queremos viver assim”.

No livro, uma assertiva que reflete escolhas encruzilhadais: a era do triunfalismo de mercado, conforme amplamente apregoado por Ronald Reagan e Margareth Thatcher no limiar da década dos 1980, está chegando ao fim. E também generalizou-se a impressão de que os mercados se desvincularam da moral, urgindo um restabelecimento desse vínculo, de procedimentos estruturadores ainda pouco esclarecidos.

Muito embora muitos economistas assegurem que a ganância desenfreada foi a causa primeira do distanciamento mercado x moral, a mudança mais decisiva das últimas três décadas foi a extensão dos mercados e de valores de mercado a esferas de vida que não eram da sua área de atuação, exigindo-se um urgente repensar dos papéis desempenhados pelos mercados em nossa sociedade atual. E um debate público sobre os limites morais do mercado se torna inadiável, antes que convulsões comunitárias empanem horizontes de todos os naipes financeiros. Um exemplo terrificante: nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, o número de guardas particulares chegou a mais que o dobro do número de policiais da força pública. Para não falar na proliferação de escolas, hospitais e prisões inseridos no sistema de busca de lucros. O que não existia há quatro décadas, hoje integram a paisagem de qualquer zona urbana desenvolvida.

Lamentavelmente, baniu-se do discurso público os ideais, emergindo nos últimos tempos a figura do tecnocrata gerencial, provocador de desilusões e desesperanças, ampliando a supremacia das finanças sobre a cidadania.

O autor acredita que os motivos da preocupação de uma sociedade que caminha para deixar tudo à venda tem a ver com desigualdade e corrupção. Que papel os mercados deveriam desempenhar na vida pública e nas relações pessoais? Como decidir que bens podem ser postos à venda e quais deles devem ser governados por outros valores que não os de mercado? Onde não pode prevalecer a lei do dinheiro?

As questões do livro do Sandel acaloradamente despertarão debates. Em muito boa quadratura, aliás, às vésperas de uma eleição presidencial onde dois fatores estarão em debate nos quatro cantos do país: os rios de dinheiro para a consolidação do prestígio do pensamento de mercado de um lado. Do outro, a animosidade e o vazio do discurso público, favorecendo a idiotização do voto nulo e do voto em branco, motes para preservação de uma elite descidadanizada e descidadanizadora por derradeiro.

Meta para o futuro Congresso Nacional, provavelmente menos vergonhoso que o atual: “repensar o papel e o alcance do mercado em nossas práticas sociais, nas relações humanas e na vida cotidiana”.

PS. O livro JOGO SUJO – O MUNDO SECRETO DA FIFA, Andrew Jennings, Panda Books, é leitura inadiável às vésperas de mais uma Copa do Mundo, que enriquece sabidos e ladrões das mais variadas espécies, sempre iludindo os torcedores que verdadeiramente são os mais sacrificados. As falcatruas João Havelange/Blatter contadas em detalhes no livro citado fazem enojar.

(Publicada em 19.05.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves