LIBERTAÇÃO ESPIRITUAL
A Igreja atual encontra-se numa encruzilhada, diante de uma crescente incapacidade de comunicar-se com a era pós-moderna, apesar de todos os extraordinários esforços do papa Francisco, sucessor de dois pontífices bastante conservadores, de características tridentinas até. E a crise é tão relevante que Richard Holloway, ex-primaz da Igreja Episcopal Escocesa não titubeou em proclamar seu alerta: “O fim da religião cristã está próximo porque há um sistema solapando a tradicional ‘economia da salvação’, que mais se preocupa em preservar o seu próprio poder do que em discutir a verdade”.
Três famosas afirmações ratificam a necessidade de a Igreja tomar mais ciência dos estudos consistentes que pesquisam com seriedade analítica seus ontens e anteontens. A primeira é de Santo Agostinho, nas suas Retratações: “A própria ideia do que atualmente se chama de religião cristã existia entre os antigos também, e nunca deixou de existir desde o começo da raça humana até a vinda de Cristo em pessoa, e nesse momento a verdadeira religião, que já existia, começou a ser chamada de cristã”. A segunda está contida no livro Quem é Jesus?, de John Dominic Crossan, pesquisador aplaudido pela sua seriedade analítica: “Na minha opinião, como sempre digo, não é que os antigos tenham contado histórias literalmente e hoje sejamos inteligentes o bastante para interpretá-las simbolicamente, mas que as contaram simbolicamente e agora somos tolos o bastante para interpretá-las literalmente”. E a terceira, de Antoine de Saint Exupéry, contida no seu Cidadela, aponta para uma urgente desacomodação da Igreja e dos seus dirigentes na direção de um milênio que ainda está dando seus primeiros passos: “Só vos tornarei grandes se as pedras que pretendeis carregar de poder, em vez de objetos de uso comum e verificável, exemplares para concurso ou instrumento de comunidade, forem pedestais e escadarias e navios que levem até Deus”.
Para a Quaresma que se aproxima, um texto deveria ser lido por todos aqueles que buscam melhor evangelizar-se, independentemente dos aspectos meramente denominacionais: O Cristo dos Pagãos – A Sabedoria Antiga e o Significado Espiritual da Bíblia e da História de Jesus, Tom Harpur, editora Pensamento, 2008. Uma leitura para cabeças que desejam ver a história de Jesus ganhar contornos nunca vistos em seus corações e intelectos, onde os rituais como Sagrada Comunhão, batismo, Natal e Páscoa adquirirão forças novas, a leitura da Bíblia tornando-se maravilhosamente iluminada, como uma fé cósmica que faz sentido no mundo atual, pluralista e em frequentes mudanças. O autor aprofunda-se nas origens do cristianismo, ressaltando que muito antes do advento do Homão da Galileia, os egípcios e outros povos acreditavam na vinda de um messias, numa virgem santa com seu filho, na concepção por uma virgem e na encarnação do Espírito na carne. O autor revela-nos uma fé baseada em verdades antigas, a partir de uma mensagem clara: a nossa crença cega no literalismo está matando a religião cristã. “Só com o retorno a uma religião ampla e abrangente, na qual Cristo viva dentro de cada um de nós, teremos uma compreensão verdadeira de quem somos e em que devemos nos transformar”, ressalta Harpur, onde compreenderemos o verdadeiro significado à luz da sabedoria antiga, muito além da sepultura, fortalecida a crença em algo concreto, muito além de uma fé baseada na emoção.
O arcebispo emérito Desmond Tutu, um dos mais notáveis anglicanos de todos os tempos, também Prêmio Nobel, não se cansa de encarecer o aprofundamento dos estudos do Novo Testamento e da Teologia, para melhor identificar as estupendas semelhanças existentes entre as políticas do Antigo Império Romano e as desenvolvidas pelas atuais potências mundiais.
Quantos cristãos desconhecem que, no século I D.C., existiram dois profetas chamados Jesus? Um deles, Jesus ben Ananias (ben significa filho de), perambulava pelas ruas, sem grupo, considerado insano pelas autoridades constituídas. O outro, Jesus ben José, também judeu, era líder de um grupo que pregava a renovação de Israel, uma forma de viver mais libertária, sendo por isso condenado à morte de cruz, forma humilhante do poder romano arrefecer os ânimos de possíveis seguidores. Daí a ironia da inscrição sobre a cruz, rei dos judeus, um modo cruel de humilhar ainda mais o povo de Jesus que estava sob dominação de Roma.
Quantos ainda não perceberam que a mensagem do Jesus bem José possui um conteúdo desindividualizante, essencialmente comunitário, a convencer que comunidade unida jamais será vencida? Tal e qual hoje em dia, quando maquinações financeiras mundializantes buscam destruir identidades nacionais, também regionais, para impor um pensamento único, submisso e passivo, incapaz de enxergar além do mínimo permitido.
Podemos ser mais comprometido com a mensagem do Jesus ben José, profissão carpinteiro, possivelmente nascido em Nazaré, centro da Galileia, à época pertencente à província romana da Síria, o hoje Jesus Cristo que tanto amamos? Devemos nos comportar como obreiros de uma nova ordem mundial, de desníveis cada vez menos constrangedores? Podemos ser ovelhas do Senhor sem se deixar tosquiar por sabidos e enganadores, sejam leigos ou religiosos?
Sempre dizendo sim às indagações acima, devemos entender cada vez mais a missão que nos foi transmitida pelo Nazareno! E para isso, necessitamos analisar melhor nossa inserção no mundo, a partir de um primeiro questionamento: será que ainda estamos, em matéria de religião, falando (rezando) como criança, raciocinando como criança e pensando como criança, como percebeu o apóstolo Paulo numa das suas cartas (1Co 13,11)?
Um outro questionamento emerge sem maneirismos algum: como se encontra a nossa criticidade, nossa capacidade de discernir cada vez mais entre fatos acontecidos, vivenciados e narrados miticamente? Não foi o próprio Jesus que nos encareceu separar o joio do trigo, jogando fora o que não prestasse (Mt 13, 24-30)? Sem tocar fogo em tudo de uma só vez, pois assim se perderia a parte boa construída?
Uma Quaresma pensante para todos nós, crentes e não crentes, brasileiros sem chiliques religiosos. Nem faniquitismos ideológicos.
(Publicada em 03.03.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves